Imagine o leitor que, quando olha parao céu, vê nuvens de tempestade como nunca viu antes, sente uma chuva densa e oleosa a cair-lhe em cima, é invadido pelo calafrio da catástrofe iminente. Mas é o único a ver as nuvens, a sentir a chuva - à sua volta, a vida continua como dantes e ninguém parece ter reparado em nada. É você que está a ver bem? Ou são eles?
Esta é a dúvida metódica que percorre as duas horas de Procurem Abrigo, o segundo filme do cineasta americano Jeff Nichols após a prometedora estreia Histórias de Caçadeira (2007), esta semana nas salas. É a história de Curtis LaForche, um homem "perfeitamente normal" da América profunda, cujas visões do apocalipse o perseguem ao ponto de ele pôr em causa o emprego, a casa e a família e arriscar soçobrar na loucura - assumindo que não caiu já nela. São essas visões verdadeiraspremonições, ou apenas distúrbios psiquiátricos?
É esta pergunta no fio da navalha que propulsiona Procurem Abrigo. A resposta pode estar no delicado trabalho de equilíbrio da personagem, assente no talento extraordinário de Michael Shannon. Conhecêmo-lo no Bug de William Friedkin (2006), desde então vêmo-lo como um dos mais aclamados actores de composição americanos (em filmes como Antes que o Diabo Saiba que Morreste, Sidney Lumet, 2007, ou Revolutionary Road, Sam Mendes, 2008, ou na série televisiva Boardwalk Empire).
Ao telefone com o Ipsilon dos Estados Unidos, Nichols elogia sem reservas Shannon, que já entrava em Histórias de Caçadeira, como "o melhor actor do mundo". E isso dá-lhe a dica para entrar no essencial da conversa. "O Curtis é um tipo perfeitamente normal confrontado com coisas extraordinárias. O essencial era que ele não parecesse louco, e que o actor não o interpretasse como se ele o fosse. Era preciso que o público estivesse do lado dele, e isso é muito complicado. O Mike consegue fazê-lo, e, mais importante, dá-nos a entender que ele nunca faria nada para magoar a sua família. Foi um enorme dom que ele trouxe ao filme."
Mas Curtis já não tem a certeza do seu lugar no mundo, no que é "uma versão sossegada" do próprio realizador, como Nichols nos diz. A personagem tem a mesma idade do cineasta (34 anos), vem de um dos estados "interiores" de classe trabalhadora (o Ohio no filme, o Arkansas para Nichols), e enfrenta os mesmos problemas do americano médio - uma crise económica, uma dúvida em relação ao futuro, os problemas de um sistema de saúde disfuncional... Os mesmos que Nichols questionava na escrita do argumento, os mesmos que lhe interessam, a ele como aos colegas "ruralistas" que, de modo bissexto ao longo dos últimos anos, têm vindo a dar cartas no cinema independente americano (Jacob Aaron Estes, Kelly Reichardt, Debra Granik ou Courtney Hunt).
"Tentei ser o mais honesto possível com aquilo que ele está a ver e pelo que está a passar," explica-nos o realizador. "No essencial, o que eu próprio sentia está personificado no Curtis. Para mim esta é uma história extremamente pessoal: enquanto estava a escrever, sentia-me ansioso, inquieto, stressado, sentia os problemas da economia, do ambiente, dos cuidados de saúde, preocupava-me com a minha mulher... Havia uma série de questões que vinham directamente da minha vida. E pensei que eu não era de certeza o único a senti-lo."
Não era.
Fazer género sem fazer o género
Procurem Abrigo reuniu à sua volta uma extraordinária unanimidade da imprensa internacional, mesmo que o filme tenha acabado por ter uma carreira comercial discreta após uma estreia notada em Sundance 2011, mesmo que o próprio realizador esteja relutante em assumir a sua "responsabilidade" no caso. "Histórias de Caçadeira era um filme sobre a vingança, e naquela altura, depois do 11 de Setembro, com George W. Bush na Casa Branca, os americanos pensavam muito na vingança, pelo que quis fazer um filme que abordasse essa questão. Do mesmo modo, a minha ansiedade fez-me sentir que,tematicamente, Procurem Abrigo poderia ressoar com muita gente. Mas nunca pensei que ressoasse deste modo." E nada faria esperar que esses temas continuassem no topo das notícias três anos depois do guião estar escrito. "A verdade é que, hoje, em 2012, esses temas continuam relevantes, e não posso aceitar toda a responsabilidade por ter abordado questões que ainda continuam válidas."
O projecto não foi fácil de montar, e essa dificuldade acabou também por moldar a sua forma final. Nichols: "Quando comecei a escrevê-lo, não tinha ainda conseguido montar um segundo filme. Estava a tentar perceber como é que o ia conseguir produzir, porque hoje em dia é extremamente difícil encontrar financiadores dispostos a trabalhar a este nível de pequenos orçamentos. E os meus filmes - dramáticos, adultos, regionais - são o tipo de coisa de que um financiador nemquer ouvir falar."
Daí que Procurem Abrigo se tenha transformado numa variação idiossincrática sobre o filme de terror ou o thriller psicológico, que "molha o pé" no género sem nunca o assumir a cem por cento. "Não quis fazer um filme de terror," acautela, "mas sim um filme que falasse da sociedade dos nossos tempos, do casamento... Mas foi uma decisão consciente introduzir um elemento de género, e isso implicava ter de equilibrar várias coisas muito diferentes. Sempre quis que o filmefuncionasse ao mesmo tempo num mundo algo onírico e num universo dramático real."
Não são poucos os que acham que Procurem Abrigo foi "roubado" nas nomeações para os Óscares - o que, depois da carreira confidencial de Histórias de Caçadeira, surpreendeu Nichols. "Os filmes que faço não respondem a uma fórmula e por isso nunca faço ideia do que as pessoas vão achar. Lembro-me, antes da projecção em Sundance, de não fazer a mínima ideia quanto às reacções. Não há muito tempo, depois de ter ouvido tanta gente a dizer-me que devia ter sido nomeado para os Óscares, tive de parar a conversa e lembrar-me que, há um ano e tal, nem sequer sabíamos se íamos conseguir entrar em Sundance, e agora estamos aqui a resmungar porque não fomos nomeados para os Óscares!"
A verdade, contudo, é que a estrela do realizador está em ascensão. Procurem Abrigo já havia ganho o grande prémio da Semana da Crítica em Cannes 2011; pouco depois da nossa conversa, soube-se que Mud, o terceiro filme de Nichols, com Matthew McConaughey, Reese Witherspoon e (de novo) Michael Shannon, fora seleccionado para a competição oficial de Cannes 2012. O que apenas confirma que o realizador americano, afinal, não é tão "ruralista" como isso. "Achava que Histórias de Caçadeira ia ter problemas fora dos EUA por se passar no Sul profundo americano. Mas compreendi que, desde que haja um elemento pessoal, algo de universal, as pessoas vão aderir. E enquanto contador de histórias, enquanto artista, o meu objectivo é sempre encontrar um sentimento universal."