“O Pecado Mora ao Lado” (“The Seven Year Itch”), de Billy Wilder (1955)

Marilyn Monroe é o resumo e o chamariz deste filme, mas é mais: é a representação convincente de um tipo ideal de mulher muito difícil de retratar, a fonte de atracção universal que move mundos e fundos, personagens e argumentos

Poster do filme “The Seven Year Itch”
Fotogaleria
Poster do filme “The Seven Year Itch”
DR
Fotogaleria
DR

Há um certo vestido branco plissado, agora amarelecido pelo tempo, que foi arrematado em leilão, em 2011, pela bagatela de 4,6 milhões de dólares, mais um milhão em comissões. Não era feito de brocado, não tinha guarnições em zibelina, marta ou arminho, nem pedras preciosas. Há até rumores de que não foi concebido por Travilla, o estilista de serviço na Twentieth Century Fox e responsável pelo guarda-roupa em oito dos filmes de Marilyn Monroe, mas por ele comprado já feito. Pois é, mas foi o que Marilyn usou na cena do respiro do metro, a famosa, a simbólica cena em que a corrente de ar gerada pela passagem do comboio subterrâneo, ao sair pela grade do passeio, elevava conveniente ou inconvenientemente, dependendo do observador, o tal vestido, revelando as pernas da tal actriz.

Para 1955, a ousadia era de mais. A multidão que se juntou tornou inutilizáveis as tomadas de vistas que se fizeram na Avenida de Lexington, em Nova Iorque, tal era o ruído dos comentários, dos assobios, das reacções a uma visão que se repetia, uma e outra vez, a cada engano da estrela (e foram muitos). E a cada repetição o embaraço do marido, Joe DiMaggio, aumentava, tendo chegado a tal ponto que acabou com aquele casamento de nove meses. Novas tomadas de vistas foram recolhidas em estúdio, num cenário de recriação daquele troço da Avenida de Lexington, o que explica, para os mais atentos, a discrepância que existe entre a imagem que ilustra os cartazes e o conteúdo da cena que ficou na versão final do filme.

Marilyn Monroe, já mencionada nesta rubrica a propósito de dois filmes já tratados, “All about Eve” e “The Asphalt Jungle”, ambos de 1950, é o resumo e o chamariz de “O Pecado Mora ao Lado”, mas é mais: é a representação convincente de um tipo ideal de mulher muito difícil de retratar (como o comprovam os tremendos falhanços que continuam a resultar de escolhas menos escrupulosas), a fonte de atracção universal que move mundos e fundos, personagens e argumentos, o ciclone magnético que põe todos no seu lugar, girando à sua volta. Deixado à solta, esse furacão seria caótico, mas Billy Wilder, o realizador, sabe mantê-lo em contenção, ao mesmo tempo que, com o seu refinamento europeu, tira o melhor de cada interveniente e forja uma comédia sofisticada e elegante, sendo “elegante” uma palavra-chave. Outro elemento notável é a segurança de Tom Ewell, cujo brilho não seria maior do que neste papel de Richard Sherman, um homem de meia-idade que fica a trabalhar enquanto a sua mulher e o seu filho pequeno fogem ao calor do Verão nova-iorquino. Responsável pela edição de livros de bolso populares cujas capas figurativas ele apimenta com assinalável “liberdade poética”, a sua imaginação galopante conquista-nos com a vivacidade com que constrói “filmes” sobre a atracção irresistível que alegadamente exerce sobre o sexo oposto ou com os semicírculos traçados a lápis, num modelo de capa, para rebaixar os decotes das personagens femininas e, na passada, rebaixando idealmente o decote da sua secretária.

Há muitos momentos engraçados neste filme sobre a teoria e a prática da crise que afecta os casamentos aos sete anos. Um deles não é o título em português, que fala de um pecado que mora ao lado, quando, a haver algum, moraria por cima. Felizmente, mais este tiro ao lado na tradução de títulos — que deveria ser pecado — esquece-se facilmente quando virmos o Sr. Kruhulic, uma espécie de porteiro ou empregado do condomínio, a ir buscar os tapetes para matar as traças e a reparar numa perna de Marilyn Monroe a assomar de uma poltrona, quando pensava que Sherman estava sozinho no apartamento. “Quem me dera cair morto! Numa situação como esta, quem é que pensa em traças? Deixem-nas comer os tapetes! Deixem-nas comer as cortinas! Quem é que se importa com isso?”. Ou logo a seguir, a expressão dos seus olhos e a entoação com que diz: “Isn’t she a living doll?!...”. Ou a altercação entre Sherman e Tom MacKenzie (a quem tinha imaginado a ter um acaso com a sua mulher), a quem aquele diz que tem uma loura na cozinha. “Qual loura na cozinha?!...”, pergunta-lhe Tom. “Isso era o que tu gostarias de saber. Talvez seja a Marilyn Monroe!”

Foto

Afinal, o tal vestido não foi muito caro, se, tal como diz Humphrey Bogart em “The Maltese Falcon”, for feito daquilo de que se fazem os sonhos...

Foto
Aurélio Moreira, jornalista do PÚBLICO, escreve semanalmente a crónica Filmes sem idade
Foto
Aurélio Moreira, jornalista do PÚBLICO, escreve semanalmente a crónica Filmes sem idade
Foto
Sugerir correcção
Comentar