Hitler vende champô, pizza, chá e outras coisas inimagináveis

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Hitler, ou por vezes apenas os seus traços distintivos, têm sido repetidamente usados em campanhas de publicidade em muitos países Jason Reed/Reuters

O bigode de Hitler, o penteado, o seu queixo levantado e a sua voz aguda: perfeito para publicidade? Sim e não, diz o alemão Daniel Erk, que há cinco anos segue aparições de Hitler enquanto figura de cultura popular. Por um lado, ao escolher Hitler, é garantido que se vai conseguir atenção - como aconteceu esta semana com um anúncio a um champô turco. Por outro lado, é certo que esta atenção se vai centrar na figura e na polémica, e ninguém se vai lembrar do produto, garante Erk.

O autor do Hitlerblog, em que documenta presenças de Hitler ou de nazis na cultura popular, seja em projectos de arte na Alemanha ou música pop na Tailândia, contou ao PÚBLICO o que lhe passa pela cabeça de cada vez que vê um anúncio com o antigo ditador alemão. "Imagino uma sala com criativos da agência e a conversa que terão tido: "Vamos pôr o Hitler a fazer isto ou aquilo", e os outros a dizerem "sim, sim, isso é boa ideia". É-me difícil de admitir que ninguém na sala levante fortes objecções e que não se desista."

Neste mais recente anúncio, o ditador alemão fala no seu habitual tom zangado, gritando num comício: "Se não veste roupas de mulher, porque usa champô de mulher?", para depois indicar a alternativa, um champô "para homens a sério". "Quem fez esse anúncio tem uma percepção estranha da História e da figura de Hitler", critica Daniel Erk. A apresentação do líder nazi como alguém especial é enganadora, defende: "Ele era uma pessoa normal que beneficiou de uma série de circunstâncias históricas. Não era um Super-Homem."

A vitória da propaganda

De um certo modo, tudo isto é fruto, ainda, da máquina de propaganda nazi. Daniel Erk nota que não há uma vaga de aproveitamento de imagens de Mussolini, embora já tenha havido anúncios com outros chamados super-heróis negativos, como Bin Laden ou Mao Tsetung. Hitler tem traços especiais: por isso aparecem imagens de gatos, peixes, ou até casas parecidos com ele. "Isso não é coincidência", diz Erk: tudo isso se deve ao emprego de técnicas de marketing modernas pelos nazis.

"O bigode, o penteado, tudo foi pensado para chamar a atenção, para ser marcante." Ainda hoje é. Embora Daniel Erk se apresse a sublinhar que, obviamente, não resulta em termos ideológicos - ninguém vai olhar para estes anúncios e sentir uma afinidade com os ideais nazis. Mas "passa a ideia de que ele era uma pessoa especial".

No blogue de Daniel Erk (que é publicado no site do diário Tageszeitung, mais conhecido por TAZ, de esquerda), há vários exemplos de anúncios e, no seu livro So Viel Hitler War Selten (qualquer coisa como Raramente Houve Tanto Hitler, em tradução livre, publicado em Janeiro), tem um capítulo dedicado exclusivamente à publicidade.

Hitler vende pizza ("É possível fazer com que as pessoas acreditem que o céu é o inferno", diz um Hitler segurando numa fatia da cadeia Hell"s pizza, a pizza do inferno) ou chá (mais uma vez, a Turquia, onde Hitler é apresentado como um hippie - "Faz a paz com o mundo", dizia o líder alemão, transformado pelo chá de rosa do anúncio).

A figura do antigo ditador nazi também já foi usada por activistas: uma campanha da organização de defesa dos animais PETA comparava a busca da raça pura dos nazis à manipulação da raça pelos criadores de cães. Na Alemanha, nas poucas vezes que apareceram referências a Hitler em publicidade, uma foi num anúncio a preservativos (um espermatozóide com o bigode e penteado de Hitler, acompanhado pela mensagem: "Usa preservativo e certifica-te de que não vais trazer o próximo Hitler, Bin Laden ou Mao Tsetung ao mundo"). No mesmo ano, numa campanha por sexo protegido - em que se vê um casal num acto sexual, e quando a câmara revela que o homem era Hitler -, A sida é um assassino em massa era o slogan. As organizações de apoio a doentes com sida criticaram o anúncio, por ser ofensivo para os seropositivos.

Mas Daniel Erk não consegue apontar um anúncio de que goste. "Haverá exemplos mais ou menos. Mas o único de que me lembro é um do canal História. Mostrava Mugabe e Hitler e dizia qualquer coisa como: infelizmente, a história repete-se no History Channel". É um anúncio "aceitável", declara Erk. "Usar Hitler para vender vinho não é."

Num mundo em que a ideia de fazer humor com Hitler já não é polémica (basta ver o número incrível de vezes que cenas do filme A Queda estão na Internet, com Hitler a expressar raiva seja por uma nova alteração no Facebook ou por uma escolha de um treinador de futebol), Erk queixa-se dos efeitos perversos da "banalização do mal". O que sobrevive são os clichés, ainda mais numa geração que verá mais Hitler em clips do YouTube do que ouvirá histórias de quem viveu sob o regime nazi.

Daniel Erk afasta a ideia de dedicar uma boa parte da sua vida profissional a Hitler (é freelancer e já trabalhou para várias publicações, desde a revista Der Spiegel ao site do jornal Die Zeit). Ironicamente, a ideia do livro surgiu quando ele propôs ao seu editor acabar com o blogue. "Não o quero continuar mais. Sinto que se está a repetir", desabafa. "Ao início, poderia ainda achar alguma piada ao absurdo, simplesmente pelo absurdo", diz. Mas agora já não há sequer o prazer da surpresa: "Já espero ver o Hitler em qualquer lado. Raramente tenho o prazer de encontrar algo interessante por acaso."

Os primeiros anúncios deixaram Daniel Erk "confuso e chocado". "Agora é só uma repetição. São demasiadas repetições."

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