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Daqui ninguém sai vivo

Pegue na trip sideral do 2001 de Kubrick; junte-lhe as alucinações fractais-digitais do Blueberry de Jan Kounen; acrescente uma pitada de misticismo Malickiano misturada com pozinhos de delírio Jodorowsky, essência de Ken Russell, David Lynch e telediscos néon ao gosto do freguês; tempere com extracto de Michel Gondry e uma colher da câmara-vómito de Irreversível. Misture tudo com a varinha mágica e atire para o écrã como quem lança cocktails Molotov e recoste-se na cadeira a ver as reacções do público. Goste-se ou não (e dificilmente se encontrará um meio termo), por onde quer que se olhe Enter the Void é uma singularidade, um objecto diferente que força as fronteiras do cinema “convencional” e a tolerância do espectador quase até à rejeição. Ou não fosse o seu autor, o franco-argentino Gaspar Noé, o mesmo de Irreversível (2002). Naquele filme, Noé mergulhava a sua meditação intensamente humana sobre a tragédia num confronto quase escatológico com a violência, que fazia o espectador olhar de frente para as coisas das quais prefere desviar os olhos.

Agora, na sua terceira longa-metragem, Noé escolhe falar da vida e da morte pelo meio de uma “viagem alucinante” que acompanha as deambulações do espírito de um “dealer” acabado de morrer por uma Tóquio alucinogénica, traçando em flashbacks o percurso que aqui o levou e acompanhando o modo como a vida continua depois da sua morte. A “viagem alucinante” - e o título português pisca o olho a um dos filmes-inspiração de Enter the Void, Viagens Alucinantes (1980) de Ken Russell - é, acima de tudo, um filme puramente sensorial, visceral, que passa o tempo a forçar as fronteiras do que é possível em termos visuais com uma conjugação estroboscópica de câmara à mão, fotografia saturada, manipulação digital e efeito visual falsamente naïf. E só a ousadia de tentar dar corpo visual a um mistério insolúvel - e de o fazer em modo de transe libertário-alucinado alimentado a drogas puras - já explica que Noé não tem problemas em arriscar tudo sem ter medo de se estampar ao comprido. Há, claro, momentos em que se estampa; ao ultrapassar as duas horas de duração, a “trip” torna-se excessiva, cai pontualmente na indigestão do efeito gratuito, como se Noé se houvesse perdido no labirinto que ele próprio criou e se tivesse esquecido do filme que era suposto haver por baixo. Mas ninguém nunca recomendará Enter the Void por ser o grande filme que evidentemente não é; antes por ser um objecto singular, coisa rara nunca vista, “passagem do terror” de feira popular que se atravessa para se dizer que se passou por ela e que não deixa ninguém incólume. Enter the Void é aquilo que o título português anuncia: uma “viagem alucinante” por paisagens que raramente o cinema convencional explora. Quem quiser que se arrisque por sua conta e risco; e não diga que não foi avisado.

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