O sol nasce por trás do Empire State Building, em Nova Iorque. A câmara de Andy Warhol regista esse momento e, em oito horas, resumirá tudo o que se vai passar até que o sol se ponha e o ciclo de 24 horas fique completo. O filme que daí resultou, "Empire" (1964), é uma experiência radical de observação do quotidiano, e é uma das fontes de inspiração de Pavol Liska, co-director do colectivo nova-iorquino Nature Theater of Oklahoma, que de 1 a 3 de Março apresenta em Lisboa, no Maria Matos, o segundo episódio de "Life and Times", espectáculo em dez partes do qual vimos, no ano passado, o primeiro episódio.
"Gostava de fazer uma homenagem a Warhol num remake do ‘Empire' em animação", diz-nos Pavol Liska ao telefone de Bruxelas. Esta referência, como outras que guardam as características de inventividade e rigor que caracterizam, segundo Liska, a avant-guarde nova-iorquina, habitam o universo referencial de uma companhia que tem na base do seu trabalho a ideia de transformação, através de missões exigentes, do aleatório em matéria ficcional.
Já havia sido assim em "No Dice" (Alkantara Festival, 2008), a partir de conversas recolhidas em ambientes onde o confronto entre arte e realidade punha a arte em causa, e "Romeo & Juliet" (Maria Matos, 2009), onde usavam as memórias de amigos sobre o drama de Shakespeare para contarem o que havia sucedido aos funestos amantes. "Life and Times - episode 2", que o Ipsilon viu no Festival de Avignon em 2011, prossegue o resultado da conversa que Liska teve ao telefone com Kristin Worrall, 34 anos, americana típica. No episódio anterior - que o Maria Matos também apresentou no ano passado - éramos introduzidos a uma narrativa muito consciente da transformação de um "nobody" em "somebody", usando como base a conversa de 16 horas tida com a actriz. Esse primeiro episódio abarcava a primeira infância de Kristin, este segundo o período dos 8 aos 14 anos. A entrevista aconteceu há quatro anos e quanto mais tempo passar, "mais ficcional se vai tornar". Interessa ao encenador essa incompletude: "Quando algo está completo, está morto". E é por isso que, ao contrário de outras peças, o processo de selecção do material aconteceu depois da gravação da entrevista, "como se fosse uma enorme rocha no meio do estúdio a precisar de ser esculpida". Ou, de forma mais perversa, "até ter sido convencido, pela própria Kristin, de que ela me estava, de facto, a contar a sua vida, como queria ser contada e não como eu a queria ouvir".
Storytelling"Há um processo de identificação natural, como acontece com qualquer personagem ficcional, que surge através de uma linguagem não dramática e sem clímax", explica Liska. As interjeições, as pausas, as hesitações e o modo como somos levados a efabular sobre a vida ficaram registados, "sem a manipulação que poderia ser indiciada caso estivesse à procura do conteúdo antes da forma". Tal como no episódio anterior, também aqui tudo o que foi dito na conversa é repartido pelos actores, que a cantam o tempo todo. À distância percebemos melhor que o efeito imediato de rejeição que o dispositivo possa criar, pela sua consciente banalidade, é, na verdade, um suporte de uma estrutura de reinvenção dos códigos narrativos, ao invés de ser uma fórmula escapista e popular de "storytelling".
"Não queremos convencer ninguém de que o que fazemos é algo novo. Pelo contrário, há aberturas no espectáculo que permitem uma identificação directa do espectador. Não queremos expor a nossa originalidade nem o nosso virtuosismo". E para exemplificar defende-se esclarecendo que alguns dos actores nunca cantaram, outros nunca dançaram e alguns nunca representaram e que a base do trabalho se sustenta nos problemas e desafios que cada episódio apresenta.
"No primeiro episódio queríamos criar uma fórmula que tornasse vivo que estava a ser dito e foi através da música que chegámos lá", começa por dizer. "É isso que explica porque são tão estáticas as imagens em palco. A composição visual foi relegada para segundo plano." Agora, a presença da bailarina Fumiyo Ikeda, intérprete das peças de Anne Teresa de Keersmaeker, resolveu esse problema: "Ela resolveu o problema da representação horizontal e tornou-nos mais atentos ao movimento e ao seu impacto simbólico". E, assim, resolveu-se o problema do movimento poder parecer despreocupado. "Comecei a mexer-me através de movimentos muito básicos, três passos para aqui, dois para ali, e foi assim que se constituiu o vocabulário coreográfico da peça".
É a partir das dificuldades que a peça vai surgindo, precisamente porque "Life and Times" não tem forma específica. Se os episódios 1 e 2 são um musical, os episódios 3 e 4, apresentados em conjunto, surgem como um drama burguês (a estreia aconteceu no fim de Janeiro, em Viena) intervalado por um filme de animação de 20 minutos que "demorou ano e meio a ser feito". O episódio cinco será um livro, como um manuscrito iluminista, o sexto será uma instalação e o sétimo um filme. Só ao oitavo episódio os Nature Theater of Oklahoma voltarão aos palcos. É desta maleabilidade que se vai fazendo um projecto que, reconhece, "é visto pelo conteúdo e não pela forma". "Torna-se difícil, assistindo apenas a um dos episódios, perceber a estrutura que os une. É preciso criar um contexto onde a peça respire por si, mas é também importante que a moldura que o enquadra possa tornar visíveis certas preocupações". Uma delas, a mais evidente, e que se perde por entre a discussão sobre se importa mais a forma ou o conteúdo: "É a história de uma mulher, alguém a está a ouvir?".