Se faltasse alguma prova para demonstrar que a escrita de viagens é essencial à ideia de literatura, este livro de Almeida Faria bastaria para a suprir. Não é só o título - “O Murmúrio do Mundo” - que consegue, sozinho, ser outro nome da literatura. É o próprio subtítulo, “A Índia Revisitada”, que não oculta alusões evidentes (incluindo a um famoso ensaio de Eduardo Lourenço, que assina o prefácio), quer sejam à tradição literária portuguesa e a um dos seus grandes mitos, quer a toda a literatura enquanto revisitação incessante: rescrita, releitura, regresso aos mesmos lugares que nunca são os mesmos.
Mas nada de enganos: a prosa de Almeida Faria dá o que promete, uma viagem à Índia, sobretudo a Goa e a Cochim, realizada em 2006, sob o patrocínio do Centro Nacional de Cultura. Como se sabe, os melhores leitores de prosa de viagens são os que nunca foram aos sítios de que os livros falam e quem nunca foi a Goa, a Cochim ou a Mumbai, vê-se aqui transportado com leveza e elegância ao interior desse mundo que no entanto lhe continuará estranho e longínquo. Não se fica com inveja do viajante, fica-se-lhe grato pela generosa magia de converter vários dias de viagem em menos de cento e cinquenta páginas de puro prazer para a imaginação e a inteligência.
Nisso, também, a escrita de viagens é uma afirmação da literatura, por muito que certos estudiosos pós-coloniais se queiram convencer de que só há nela ideologia bem ou mal disfarçada. Na literatura, explicou Barthes, há tudo, todos os saberes e há sobretudo o sabor desses saberes. A prosa de Almeida Faria, que é no essencial prosa clássica, muito bem medida, é exímia na manipulação do sabor ou, para falar de acordo com o livro, é exímia na condimentação da Índia. A memória do império colonial português, memória de igrejas e feitorias, de casamentos e de condenações à fogueira, de cobiça e de fascínio, de dominações e de ruína, é trazida sem sombra de nostalgia ou ressentimento, afinal mais como parte das “mil faces da Índia” do que como depressivo destroço da história nacional.
Na era pós-Edward Said, escrever sobre a Índia é correr o risco de ser lido como um “orientalista”, mas “O Murmúrio do Mundo” escapa desse destino mostrando onde estava a debilidade da teoria de Said: na crença de que o “orientalismo” resultava de uma visão livresca do mundo. Aqui há livros desde o primeiro parágrafo, livros escritos por outros, antigos e actuais, relatos e ensaios, crónicas e poemas, um vasto palimpsesto que obviamente inclui os grandes textos indianos, dos “Vedas” ao “Kama Sutra”, sem esquecer os romances de Salman Rushdie. “Índia” quer ao mesmo tempo dizer um grande país algures na Terra e um vasto arquivo espalhado por toda a Terra. Em boa parte esse arquivo foi escrito em português desde o fim do séc. XV e Almeida Faria joga às claras com tal parte do arquivo: tudo tem agora de ser escrito doutra forma, no tempo dos “cómodos incómodos dos nossos passeios aéreos”, tão diferente do “dos homens das armadas de outrora, amontoados em acanhados cascos de naus e bergantins”.
Ler é quase a primeira coisa que este viajante faz, instalado no “gigante volante” e sem conseguir dormir. Ler, citando, sem aspas, sem indicação clara do citado, será uma das coisas que fará nas últimas linhas do curto capítulo do “Regresso”. É afinal uma poética: hoje, todo o viajante é leitor (nem só de viagens) e só isso faz dele um viajante realista, sobretudo se a viagem for à Índia. O sentido histórico tem aqui a forma dos textos e da arte de ler neles o tempo que passou a ponto de já não estarmos certos do que nos liga ao que neles está escrito, se alguma ligação há. Sem esse realismo, não há o outro, que permite gravar, por exemplo, a fachada da igreja de Santa Maria de Kaduthuruthy, onde “a Santíssima Trindade coabita com dois assanhados dragões de boca aberta e cauda alçada (...) e com duas nagis semelhantes a sereias de tronco rosado e rabo de peixe azulado (...)”. Ou as particularidades de um espectáculo de teatro Kathakali; ou os detalhes do pagode goês de Shri Manguesh; ou a paisagem também goesa de uma “várzea de arroz crestada pelo sol e rodeada por mangues e coqueirais que a brisa morna e mole mal tocava”.
Isso faz o murmúrio do mundo indiano e a atenção que ele requer, aqui redobrada pela atenção de Bárbara Assis Pacheco, que também fez a viagem e ilustra (a palavra está errada) estas páginas da maneira mais perfeita. Mas este não seria um livro de Almeida Faria se daí se não destacasse uma voz estranha e inesquecível.
Essa voz chega na figura de um homem que em Goa se faz à conversa com o viajante, vestido anacronicamente. No final da conversa, em que relata uma vida de pintor, nascido em Bruxelas, que abandona a pintura pouco depois de chegar à Índia, o homem lá diz o seu nome, que é Miguel. Aliás, Michiel: “Michiel quê? Sweerts, Michiel Sweerts, e soletrou o sobrenome duas vezes.” Com pouca pesquisa, qualquer um entenderá o que isto implica: que não há viagem que evite um encontro com fantasmas. Já o que isso significa é outra coisa e, a bem dizer, nunca se lá chegará sem ler muito bem pelo menos este livro.