1958 foi o ano em que se estreou “A Mulher que Viveu Duas Vezes”, de Alfred Hitchcock, que já distinguimos em crónica anterior e que se distingue pelo estilo particular do seu criador. “Gata em Telhado de Zinco Quente, de Richard Brooks, “A Sede do Mal”, de Orson Welles, e “A Tragédia do Titanic”, de Roy Baker, são outros exemplos relevantes do mesmo ano de como o cinema é composto por peças tão diferentes entre si, tanto pelo tema como pelo tratamento dado por cada um dos respectivos realizadores. No entanto, dificilmente se poderá encontrar nesse ano e nos seguintes algo tão desconcertantemente diferente da norma, incluindo a de que naturalmente faz parte, aquela que poderíamos designar, por facilidade de argumentos, a “norma europeia”, por oposição à “norma americana”.
O cinema de Jacques Tati, não se enquadrando em nenhuma dessas normas, começa por desconcertar o espectador que o descobre. Desconcerta porque não se espera, porque ninguém tinha avisado para a possibilidade de se entretecer histórias cativantes com fios tão finos, tão frágeis, tão brandos, tão simples, aparentemente com muito menos do que os outros usam para fazer os seus filmes. Dir-se-ia que é um cinema feito por um misterioso método subtractivo, em que se pega num argumento e se vai retirando tudo o que estorva a observação directa da vida quotidiana, para identificar, afinal, os artificialismos que impedem o homem de viver a sua humanidade.
Vencida a surpresa da apresentação, quem conseguir relacionar-se ainda com a brandura após o embotamento devido a sobrecargas sensoriais sucessivas causadas por anos de filmes de acção, de vampiros, de terror e de falsa comédia poderá ser seduzido por um modo muito próprio de mostrar a vida no seu essencial. É um modo que tem muito a ver com o cinema mudo, com a sua capacidade de comunicação universal, de contar sem palavras. E embora convenha lembrar que se o cinema se tivesse fixado nas fórmulas do mudo não teria sido possível apreciar obras como “All about Eve”, é evidente que muita da simplificação do cinema de Jacques Tati se deve à preponderância dada à imagem e à consequente redução da palavra ao papel essencial de ligação entre quadros, de caracterização de personagens, de reforço de humor. Note-se como a personagem principal, o Sr. Hulot, interpretado pelo realizador, praticamente não fala. Em compensação, temos um sem-número de pormenores visuais para atender (vemos por uma lupa tanto o que é duvidoso, artificial ou ridículo como o que é autêntico, primordial e salvador) e temos uma música indispensável.
Neste filme que começa e acaba a darmos por nós a apreciar o que fazem uns cãezinhos na rua, há um varredor que, por causa das conversas com os transeuntes, adia sistematicamente a remoção do lixo que juntou num montículo sem se perceber como, há um prédio que poderia ter sido concebido por Charlie Chaplin ou Buster Keaton, em cuja cobertura mora o nosso Sr. Hulot, que nós acompanhamos no seu trajecto labiríntico, à medida que lhe vemos os pés ou a cabeça assomar por estranhos postigos, janelas e varandas, devassando zonas de privacidade dos vizinhos (mostrando-nos apenas as pernas e os pés, percebemos que ele se vira de costas para permitir a passagem, com o mínimo de embaraço para ambos, a uma senhora em combinação), há uma casa de novo-rico fabulosamente tomada pela frieza da tecnologia. E há uma mão de criança que procura a mão do tio e, finalmente, a do pai. Que bem que se vê!...