“Relíquia Macabra” (“The Maltese Falcon”), de John Huston (1941) Clássico entre os clássicos policiais negros, mais clássico ainda do que “Pagos a Dobrar”, que foi feito três anos mais tarde, é este “Relíquia Macabra”, realizado por John Huston com argumento seu, escrito a partir do também clássico romance policial “The Maltese Falcon”, de um dos mais clássicos escritores do género, Dashiell Hamett.
Sam Spade, o detective que Hammett criou (assim como Nick e Nora Charles, da série de livros e longas-metragens “The Thin Man”), teve em Philip Marlowe, criação de Raymond Chandler (co-argumentista de “Pagos a Dobrar”), o seu rival mais competente (a comparação mais acertada seria entre os dois escritores) e Humphrey Bogart interpretou ambos. O que nos dá o pretexto de o vermos brevemente a encarnar Marlowe.
Mas voltemos a “Relíquia Macabra”, muito interessante a vários títulos, incluindo o de mostrar um Humphrey Bogart para além de “Casablanca” (neste caso, um ano antes), título a que o actor ficaria para sempre associado, mas ao qual nunca deveria ser reduzido, tal como o não deveria ser em relação ao detective Philip Marlowe.
Mas o primeiro motivo de interesse é o ser um filme negro de John Huston. É nesse ambiente que todas as outras peças encaixam: argumento, personagens, actores. Comparativamente, pode dizer-se que o argumento nem sequer é muito importante, já que o não ser capaz de o compreender completamente (como acontece, por exemplo, aquando de longas explicações sobre o que se passou que não vimos) não impede a fruição dos fascínios que aquele ambiente contém: um detective que sabe sair de situações difíceis, mesmo que incompreensíveis para o próprio, um jogo de gatos e ratos com repentinas trocas de papéis, uma busca por um objecto misterioso tão poderoso que faz todos serem tal como são, o famoso objecto “feito do material de que os sonhos são feitos”.
Vejamos “Key Largo” ou “The Asphalt Jungle”, do mesmo realizador, para percebermos o alcance do conceito de “ambiente” a que nos referimos aqui e para confirmarmos o outro grande elemento de sucesso: a caracterização das personagens e a consequente escolha dos actores que os figuram.
Harmonizando-se com Bogart no interminável desfile de voltas e reviravoltas, temos Peter Lorre, de cabelo frisado, guarda-chuva de cabo em ângulo recto, cartões-de-visita perfumados, falinhas mansas e pistola de mulher (o que, para 1941, não deve suscitar dúvidas quanto ao que se queria representar), no papel de Joel Cairo (a que Jon Anderson e Vangelis prestaram homenagem em 1981, lançando o álbum “The Friens of Mr. Cairo); Sidney Greenstreet, tão cavalheiresco como perigoso, astuto, formal no vestuário (polainas, casaca, roupão de lapelas de seda) e no discurso, mas franco admirador do carácter imprevisível do seu adversário Sam Spade, que muito o diverte (“By Gad, sir, you’re a chap worth knowing. An amazing character!”, no papel de Kasper Gutman; Mary Astor, num papel tão contrário ao que vimos desempenhar em “Dodsworth” que se torna numa prova eloquente da arte de se transfigurar: ali, como Mrs. Edith Cortright, convidativa e salvadora; aqui, como Brigid O’Shaughnessy, falsa e traiçoeira. Tudo somado, um clássico feito do material com que os sonhos eram feitos, mas já não...