Portugal-Dakar Challenge: À reconquista da lenda

Em 2008, a prova Lisboa-Dakar foi cancelada. Quatro anos depois, uma caravana lusitana de todo-o-terreno fez-se à estrada — e às pistas — para cumprir o sonho: cruzar Marrocos e a Mauritânia, atravessando montanhas e desertos, ultrapassando obstáculos, esventrando um território tão inóspito quanto viciante com a missão de chegar ao Senegal. Duas semanas depois, objectivo alcançado: Dacar à vista.

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NATACHA BRIGHAM/WWW.ACROSS.PT

Enquanto se ouvem os roncos dos motores vindos das dunas, num cantinho do acampamento onde passamos a noite grelham-se peixes para o jantar. Respeitáveis douradas e pequenos atuns apanhados nessa manhã no mar, que nos acompanha por estes dias, e cujos corpos escamados as mulheres amanhavam quando chegou a caravana que se propôs, em 15 dias e em todo-o-terreno, ligar Portugal a Dacar, numa simulação aventureira da prova que ficou por cumprir em 2008.

A noite já começou a cair e com ela o fresco que nos impele a ficar por perto das brasas enterradas na areia e sobre as quais a grelha de protecção de um esquecido frigorífico recebe os peixes que homens e mulheres, de garfo em punho, vão virando à vez. O ritual junta vários aldeões que parecem esquecer-se que ali estamos.

Mulheres sentadas vão acolhendo as crianças pequenas que procuram o calor dos seus colos. Dois homens, carinhosamente abraçados, riem-se do esforço de quem está de serviço à grelha: uma mulher de cigarro ao canto da boca e um homem com uma pequena lanterna para verificar o estado de cozedura do jantar vão discutindo, provocando risadas entre os que os observam.

Quer-nos parecer que tentam concluir qual dos dois terá mais jeito para a tarefa, mas nada entendemos do que dizem. Uma pequenita aproxima-se em busca do calor e vai-se encostando, qual gato mimoso. Não revela carência, mas curiosidade por estes seres de tez pálida e cabelo escorrido que chegaram montados em bichos barulhentos e que levaram a que as casas da aldeia — estruturas improvisadas em madeira, lata, plástico, pano — ficassem despidas de colchões e almofadas, que trouxeram para nosso conforto. Já à tarde se tinha juntado à nossa beira para partilhar bolachas. “Primeiro para os bebés”, esclarecem-nos. Só depois para os petizes mais velhos, entre os quais alguns desdentados, denunciando a idade.

Os peixes vão entrando e saindo da grelha e os nossos anfitriões de vez em quando lembram-se que ali estamos e sorriem-nos. O tempo passado à beira das brasas presenteia-nos com as grandes e reluzentes ovas que o homem, que cuidadosamente as sacou às entranhas de um dos peixes, partilha connosco ao mesmo tempo que vai amontoando o pescado numa larga bacia de metal que mantém próxima do lume com o objectivo de conservar o jantar quente.

Estamos em Teichott, Mauritânia, aldeia piscatória do Banc d’Arguin, uma área protegida que atravessamos, o mais junto ao mar possível, por vezes até ao sabor das ondas e respeitando as vontades (e horas) das marés, com uma autorização especial e escoltados por duas colunas militares que nos mantêm em segurança, mas também debaixo de olho.

Consegue-se imaginar que a aldeia, onde a única luz artificial é providenciada por um gerador, adormece cedo. Mas hoje o relógio biológico é adiado e, mesmo com o escuro por companhia, há músicas e dançares enquanto se criam laços de amizade à volta de uma roda composta sobretudo por mulheres e crianças. Também há homens, mas não metem conversa. Já elas dizem os seus nomes para, logo a seguir, nos perguntarem pelos nossos. Os ‘l’s são difíceis de enrolar e os “r”s de pronunciar, o que faz com que alegremente nos rebaptizem.

As risadas são inevitáveis e depressa comunicamos por uma linguagem mais universal: a da dança. Ritmos compassados que nos vão pacientemente ensinando até chegar a hora das birras de sono dos mais pequenos, que ditam a hora da festa terminar.

A viagem começou há nove dias e os ocupantes dos 23 jipes (o 24.º ficou por Marraquexe, à 5.ª etapa, devido a problemas com a caixa automática), duas motas e um camião já denunciam cansaço. Esta é a última vez que se dorme em acampamento, mas já é a quarta noite (e segunda consecutiva) sem um duche — excepto para alguns mais prevenidos que trouxeram de casa um portátil — ou mesmo uma casa de banho por perto além das pequenas dunas que vão servindo de abrigo. Valemo-nos de toalhetes humedecidos que servem tanto para lavar como para refrescar a meio do dia que, depois de nos acordar envoltos numa brisa gélida, aquece para lá de uma tarde de Agosto.

O pó é responsável por algum mal-estar, mas também é graças a ele que vamos apresentando uma cor cada vez menos pálida, que de bronzeado pouco tem. Já os cabelos denunciam os banhos salgados desse dia, num mar com laivos verde-esmeralda cuja visão, depois de dias de pedra, areia e gravilha a perder de vista, permitiu a alguns recuperar ânimo. Já a outros, a proximidade do oceano e os rios de areia que havia para atravessar impuseram o devido respeito: atascanço sim, atascanço sim, a maioria não escapou à ratoeira da amolecida areia e houve quem tivesse até de lidar com um banco de lodo que se estava a revelar esfomeado por metal o suficiente para abrir uma brecha ao medo. Tudo se resolveria com guinchos, pás e mais guinchos.

O purgatório do asfalto

A ideia de percorrer o mítico percurso da prova Paris-Dakar, que, entretanto, se mudou para a América do Sul, pode ser aliciante para qualquer fã do todo-o-terreno. Mas até conseguir arrancar algum do prazer que os veículos TT permitem — e que têm no seu nervo central a grande habilidade de nos fazerem chegar a zonas onde nunca assentaríamos pé por outro meio de transporte sempre com o espírito de “deixar os sítios por onde se passa incólumes” ou até mesmo “melhores do que os encontrámos”, sublinha-nos um dos participantes — há muito alcatrão a palmilhar.

Desde o Cartaxo até Portimão, em duas etapas que fecharam o ano 2011, e daqui até Marraquexe, o asfalto é rei. Estradas e auto-estradas que parecem não ter fim e que surpreendem pelo excelente estado de conservação. Não há buraco à vista pelas faixas de rodagem e, embora passem por nós veículos que nos arregalam os olhos, como carros a carregarem camuflados tanques de guerra ou camiões cuja carga nos parece a qualquer instante tombar-nos em cima, segue “tudo a rolar”, como se ouve tantas vezes pelo rádio, “dentro da normalidade”.

A passagem da caravana arranca sorrisos e saudações de gente que avistamos nos sítios mais inusitados, como no meio de uma auto-estrada, sem que haja um único ponto de luz a indicar-nos uma qualquer zona habitacional. E uns quantos até posam para a fotografia. Sempre que os carros param, brota gente de todos os lados. Chegam a correr e com as mãos (e os braços e os pescoços e os bolsos) a transbordarem de bugigangas que tentam a todo o custo (e por qualquer valor) vender. Como os três homens que, assim que imobilizamos as viaturas após uma das muitas portagens, surgem, não se sabe bem de onde, com colares coloridos em riste. “Flor de piño, señora”, diz-nos um, arranhando uma tentativa de espanhol, “un’eura / dez dirhams” (o câmbio do euro estava por estes dias a 10,80 dirhams).

Para quem não gostava de colares havia como opção cestas de vime (“una, cinq’eura”), enquanto um dos homens, de traços enrugados e cujo sorriso revela a ausência de dentes, nos exorta a trocar uma moeda de 50 cêntimos por dirhams. Consequência de europeus que vão deixando moedas que de nada valem às gentes marroquinas: o banco apenas troca notas e o precioso metal acaba por não passar de peso morto nos bolsos de muitos. Enquanto isso, a negociata prossegue. Um dos nossos companheiros de viagem atreve-se a oferecer “três euros por duas cestas de vime”. Mas o valor não baixa de “dua, quatr’eura”. Já o custo dos colares é mais oscilante: de um euro cada passou a um euro por dois, depois três, depois quatro…

Abandonamos os comerciantes da auto-estrada de mãos a abanar, mas já com mais traquejo para negócios futuros, a maioria a transpirar ilegalidade. Como um volume de tabaco por 15€ logo após a saída da fronteira de Marrocos (mas cujo valor ia mudando à medida que íamos entrando na Mauritânia: no primeiro posto de controlo custava 13€, no segundo 14€ e no último 20€!) ou a troca de uma tenda por dois volumes entre as fronteiras da Mauritânia e Senegal — uns metros à frente, o mesmo comerciante estaria a tentar conseguir uma tenda por apenas um volume.

À medida que avançamos para sul, a pouca Europa que se consegue encontrar nos portos a norte ou mesmo na capital Rabat — onde dormimos num Ibis Budget cuja noção de desinfecção sanitária se resume à colocação de um papel a indicar tal facto — vai desaparecendo numa paisagem marcada por edifícios por terminar que assim evitam o pagamento de um imposto cobrado após finalização da obra. O urbanismo é assim pautado por pilares a descoberto ou pinturas por executar em localidades que durante o dia parecem fantasma e à noite enchem-se de vida. Como na primeira vila onde aterrámos para um jantar tardio num dia em que o almoço se resumiu a duas ou três dentadas numa sanduíche e umas quantas batatas de pacote.

Em Assilah, depois de um pequeno desvio da auto-estrada que nos levaria ainda nessa noite a Rabat, aproveitamos uma das muitas esplanadas pertencentes aos pequenos restaurantes de onde a comida vai saindo do outro lado da estrada. Ficamos logo pela primeira, onde uma quente e revigorante harira (sopa tradicional marroquina, que alguém acusa de ter vindo directamente de um pacote de sopa Maggi) quase nos faz esquecer as horas de caminho de Portimão a Tarifa, as trapalhadas aduaneiras, o aborrecimento do alcatrão.

Enquanto saboreamos a adocicada harira com pão, o homem que nos serve vai atravessando a estrada de um lado para o outro com as loiças para compor a mesa onde nos sentamos, com com copos XL de chá de menta hiperdoce e mais pão para enganar os estômagos enquanto o peixe e a carne não se libertam da grelha. Ainda pedimos cerveja. Algo que o nosso interlocutor se presta a arranjar — até porque não houve uma única vez que tivéssemos ouvido a expressão “não temos”. Mas a loja que as vende à socapa já fechou e do seu proprietário nem sinal.

As refeições vão chegando enquanto pela rua o movimento não abranda: carros velhos e desconjuntados, homens de crianças pequenas pela mão, mulheres acompanhadas com um trio de garotas de patins, alguém que passeia o cão, bandos de rapazes que se divertem, raparigas que escondem os cabelos ao mesmo tempo que baixam a cara à passagem dos homens-pálidos.

Uma realidade que, com muitas excepções, se observa ao longo do território marroquino que percorremos: o turismo é protegido e as autoridades andam quase com os visitantes ao colo (excepto se algum atrevido não respeitar as sinalizações ou as paragens obrigatórias), mas a postura europeia provoca a repulsa de vários olhares com que nos cruzamos e que nos querem forçar a baixar a cara, tal como as jovens com que nos cruzámos logo no primeiro dia.

Praça de vida

O seu nome, dizem algumas teorias, aponta para um mundo de defuntos, com Djema El-Fnaa a poder traduzir-se por “assembleia dos mortos”. Mas, o que se encontra na praça afecta à Medina de Marraquexe, sobretudo após o pôr do sol, é uma explosão de vida que funciona como um despertar abrupto de todos os sentidos.

O olhar cruza-se com gente de todos os feitios, os cheiros manifestam-se em diferentes intensidades, os sons atropelam-se, os sabores sentem-se ainda antes de os sujeitarmos ao teste do palato. Depois há ideias que fervilham, políticas que se discutem, tertúlias que se formam. Cobras e macacos amestrados que vão mostrando habilidades, charretes para passeios turísticos, motocicletas barulhentas que nos envolvem no seu rasto de fumo.

Caminhar pela praça é como entrar num filme sem que os personagens dêem pela nossa presença. Todos estão nas suas vidas, parecendo alheios a tudo o que se passa à sua volta. Particularmente aos olhares dos curiosos, que apenas servem para atrair um ou outro vendedor de cigarros, assim como uma mulher, com uma criança a trote, a tentar vender ao melhor preço pensos rápidos e lenços de papel e que sob os panos, notamos, esconde o pijama já vestido.

Enquanto atravessamos o pulsar da praça, de um lado vêem-se barraquinhas que exibem toneladas de laranjas reluzentes e que propõe sumos naturais. Outras vendem frutos secos: amendoins, avelãs, cajus. Mas também tâmaras e figos caramelizados e, claro, as mais diversas especiarias: cominhos, canela, açafrão…

Do outro lado, somam-se toldos brancos que marcam pequenos restaurantes onde mesas de tampo improvisado recebem reuniões de negócios, turistas curiosos, famílias marroquinas. Pelos corredores, vários rapazes tentam cativar-nos para o peixe fresco ou para a carne tenrinha que têm para servir. Qualquer hesitação pode levar a um mal-entendido e este a uma disputa pela clientela.

Acabamos por nos sentar numa minibarraquinha, onde uma espécie de balcão-mesa ladeia os tachos de onde dois homens vão tirando, com mãos que já não se queimam, a carne para corte. Comem-se cabeças de carneiro, algumas das quais expostas inteiras, e, à falta de talheres, lambem-se dedos. As batatas fritas para acompanhar vêm de uma outra barraca onde os nossos anfitriões as vão buscar. E a harira, desta feita sem Knorr ou Maggi à mistura, chega a ferver de um outro restaurante, servida com colheres de pau. Não há nada que se peça que não se arranje: até um pepino para acompanhar uma tajine.

A refeição estava perfeita até à hora de se pagar a conta: cálculos para ali, cálculos para acolá, o marroquino que recebe o dinheiro garante faltar um pagamento, enquanto os comensais asseguram que o valor total já foi entregue. E, embora a carne se tenha desfeito na boca e a harira tenha sido da verdadeira, a noite acaba com a certeza de não se voltar à barraca n.º 15.

Marraquexe deixaria outro tipo de travo amargo, quando os funcionários do hotel apreenderam discretamente as bagagens dos membros da organização da aventura sob o argumento de faltar o pagamento de uma qualquer taxa — situação que se resolveria com a intervenção da polícia e do delegado do Turismo. Já à Fugas, a cidade vermelha, de trânsito caótico e avenidas largas, adoçou a boca com um viajado café expresso, de gosto acre e textura pesada, fruto da boa vontade do dono de um botequim onde se almoçaram condimentadas brouchettes e que nos ofereceu o remate da refeição indo buscar os copinhos ao café do outro lado da agitada estrada.

Venham as pistas

O dia em Marraquexe até parece querer fazer-nos esquecer o propósito: unir Portugal à capital do Senegal por todo-o-terreno. E ainda falta muito alcatrão até se conseguir atingir as pistas que os veículos já tanto anseiam. Uma longa viagem por auto-estrada até Agadir e daqui, já por estrada, rumo a Sidi Ifni, cidade junto ao mar onde chegamos com a queda do dia. Pelo caminho, penetramos cada vez mais as entranhas de Marrocos, passando montes e montanhas, zonas áridas e outras verdejantes, vilarejos que parecem perdidos no e do mundo.

Agadir chega com um cheiro que tão depressa nos parece cebola refogada como detritos de um deficiente sistema sanitário. O lixo faz parte da paisagem e as casas de banho já deixaram de ter sanitas e autoclismos, substituídos por loiça de chão com um buraco directo para o esgoto e um balde sob uma torneira gotejante. E à medida que se viaja mais para sul menores são as condições de higiene encontradas, como as de uma casa de banho numa bomba de gasolina em Sidi Ifni, cujo cheiro nauseabundo nos leva a aguentar um pouco mais.

É com noite cerrada, e depois de várias peripécias pelo caminho, que incluíram um jipe avariado, que chegamos ao primeiro troço de pista. E subitamente parece que cada pedacinho de alcatrão negro valeu a pena.

Fintam-se pedregulhos, avança-se a cuidado nas inclinações, acelera-se quando a lua crescente assim o permite. É oficial: conseguimos sobreviver ao purgatório do alcatrão e avançar para o que variaria nos dias seguintes entre um paraíso de sensações e um inferno de emoções. Mas já lá chegaremos: antes uma noite no complexo turístico de Fort Bou-Jrif que funcionará como uma introdução às duas noites que se passarão em pleno deserto do Sara.

Ainda sem privações e com mimos que nas noites seguintes nos haveriam de parecer luxos: tendas bem abrigadas; colchões macios; mantas quentes; casa de banho, ainda que comum, funcional e servida por um duche pujante; refeição completa; espectáculo de cobras e danças berberes.

A cada passo, a paisagem muda abruptamente. De um piso de areia cercado por plantas que nos indicam a presença de oueds (rios secos) passamos a terra dura, tão estanque quanto alcatrão, para logo a seguir rasgarmos lagos de cascalho.

Não é o deserto que os postais mostram. É o deserto do nada. Do vazio. Da ausência total de estímulos: não há cheiro, além do nosso; não há sons, além da música trazida pelo vento. Apenas terra a perder de vista e um céu que nos parece querer convencer ter saído de uma tela.

É um dos engodos do Sara: consegue fazer crer aos que se aventuram pelas suas entranhas que tudo em si é imutável quando na realidade qualquer coisa que nele se encontra se transforma a cada instante. Um oceano seco que também nos embala nas suas ondas, algumas criadas pela passagem de veículos que, ao longo dos tempos, foram desenhando uma espécie de carneirinhos, mas que por vezes nos assusta com uma ou outra vaga maior.

Os cuidados também se prendem com a acção humana na zona: estamos a navegar por um mar de minas, herança do conflito que opõe Marrocos à Frente Polisário. É que, embora já se tenha procedido à desminagem da área — ainda em meados do ano passado a ONU informava ter desactivado mais de dez mil engenhos —, ainda há muitos dispositivos por localizar, fruto de cartas militares perdidas, explicam-nos, e o melhor é não arriscar. Por isso, circulamos entre os montes de pedras (cascalho ou mesmo pneus) que servem de balizas.

Ainda assim, mesmo cumprindo o trilho assinalado, há areia para brincar com a tracção às quatro, lombas para exercer, curvas para gingar, degraus para voar. Até porque, como se ouve via rádio, “o mar aqui à frente está crispado”.

Pelo caminho, saltitamos, corremos, aceleramos, afocinhamos. E quando, por um momento, perdemos o contacto rádio, compreendemos a armadilha que o deserto vai tecendo: o vento, que não parece dar tréguas por um instante que seja e que molda as petrificadas árvores ao seu capricho, vai varrendo as marcas deixadas e cobrindo as pistas com areia ao mesmo tempo que suaves dunas nos dão a ilusão de o horizonte estar cada vez mais perto. O problema é que depois de um surge outro. E outro. Isto sempre dentro da mesma cúpula que parece manter-nos aprisionados, como se estivéssemos dentro de uma daquelas bolas que quando se agitam cai neve. Só que, aqui, em vez de neve, à noite sentimos que podemos agitar estrelas.

Por algum motivo, o deserto acabaria por nos devolver a reverência com que optámos por tratá-lo ao colocar no nosso caminho um solitário dromedário, o qual, após uma dança (divertida para nós, mas certamente angustiante para o bicho), se daria à morte para a objectiva.

Depois do brinde do nada, chegaria um descanso de duas noites no Dakhla Attitude, um complexo de bungalows, encaixados numa ravina e debruçados sobre o mar, que diariamente recebe amantes do kitesurf e que nos acolheu a necessidade de repouso — que depressa se transformaria em sede de mais pó.

Atravessando fronteiras

A maior prova de uma expedição todo-o-terreno por África poderia encontrar-se nas pistas. Mas são as fronteiras para as quais a maioria dos veículos não chega preparada. As esperas são longas e o que poderia demorar minutos depressa se transforma numa espera de horas.

A entrada em Marrocos, para o grupo em que a Fugas seguia via Tânger, já tinha obrigado a algumas diligências. Mas é a saída do país que se revela mais complicada. Desde a chegada dos carros ao posto fronteiriço até à saída para o vazio da designada “Terra de Ninguém” — uma língua de terra de 3,5km que separa Marrocos da Mauritânia e que nos recebe como se de uma espécie de limbo se tratasse, afrontando-nos com toneladas de sucata e negócios obscuros protagonizados por gente que se comporta quais sanguessugas — passaram-se cerca de sete horas. Mais de metade para conseguir sair do primeiro país, cuja fronteira vai reunindo TIR amontoados, turistas em autonomia, viajantes solitários, expedições de aventura como a nossa.

A observar-nos há guardas, agentes aduaneiros, militares, gendarmes… Controlos a atravessar até ao último centímetro marroquino e sempre em contra-relógio: a fronteira mauritana encerra às 18h e, mesmo depois de atravessarmos a salvo a dita “Terra de Ninguém”, ainda temos pela frente quatro postos de controlo (um deles, a Fugas passou a pé, enquanto participava num esforço conjunto de fazer café entre as filas e abençoado por um dos guardas fronteiriços) para podermos dizer que chegámos à Mauritânia.

E, mesmo depois disso, há a necessidade de efectuar seguros das viaturas. Num buraco escuro, em cujo letreiro sobre a porta se lê “Café / Restaurant”, elaboraram-se apólices à luz da lanterna. A Mauritânia, cantada n’Os Lusíadas como “Terra que Anteu num tempo possuiu,/ Deixando à mão esquerda; que à direita/ Não há certeza doutra, mas suspeita”, é uma estreia para a larga maioria dos que seguem na caravana.

Chegamos com preconceitos sobre as leis — há até quem diga que é proibido as mulheres conduzirem no país — e sobre a falta de segurança (um facto quando se envereda pelo interior, explicam-nos). Mas, ao atravessarmos o país de ponta a ponta, sempre pela costa, resta-nos apenas a certeza de abrigar muitas e diferentes realidades: a de um acampamento à beira-mar, viciado pela incursão turística e com algumas tentativas de aproveitamento em relação aos visitantes; a da aldeia piscatória, onde grelhámos peixe e onde nos exigiram o respeito pelos bebés e velhos; a dos pescadores ao longo da costa com que nos cruzávamos; a dos miúdos de Mamghar onde deixámos a petiz Maria feliz com um conjunto de “cadeaux”; a dos talhos a céu aberto dos vilarejos por onde passámos; a da capital Nouakchott, onde o trânsito infernal parecia coordenar-se sozinho na perfeição e onde pelas ruas se vêem cabras a pastar ou até uma vaca morta, abandonada à beira da estrada.

A saída da Mauritânia faz-se pelo Parque Nacional de Diawling, onde os jipes se vão cruzando com (e desviando de) cobras, vacas, camelos, javalis. O Senegal já está perto. A menos de meia hora, calculamos. Mas a proximidade da fronteira trouxe consigo uma nova aventura. A cerca de dez quilómetros da saída mauritana, onde as dezenas de jipes já se tinham juntado, o camião atascou no lodo. E as primeiras tentativas de o resgatar revelar-se-iam infrutíferas. Foram necessários reforços, que chegaram sob uma nuvem de pó. E, mesmo com estes, as tentativas de levar a bom porto o desatascanço não pareciam querer vingar. Foi preciso atingir o limite — 30 minutos antes do encerramento da fronteira — para o camião se convencer a sair da lama onde se enfiou de mergulho.

Conseguido o passe de saída da Mauritânia, também há que atravessar uma espécie de “Terra de Niguém” para chegar ao destino final. Mas esta é abençoada pelo curso de um rio e revela-se de um verde que arriscaríamos a descrever como vibrante após dias em que os olhos se viram inundados por cores secas. Para trás, ficaram os véus e os panos a cobrirem os corpos femininos. Em território senegalês, são substituídos por exuberantes chapéus.

Os homens, altos e de sorriso aberto (e completo), exibem roupagens brilhantes, de tão limpas, enquanto as mulheres se pavoneiam em cores garridas que formam generosos decotes, ao mesmo tempo que mostram cabelos armados numa multiplicidade de penteados. Imagens que entram em choque com toda a envolvência marcada por metros e metros quadrados de lixo a céu aberto — onde rebanhos aproveitam para pastar — ou, como no caso da frenética St. Louis, pelas miudezas de peixes esventrados que impregnam todo o ar respirável ao longo do porto de um cheiro nauseabundo.

Seria na manhã seguinte que nos deixaríamos envolver pela beleza que o Senegal encerra, ao acordarmos junto ao lago Rosa ainda antes do despontar do sol. As imagens que se seguiriam seriam de uma placidez tão semelhante à do deserto e far-nos-iam desejar que Dacar estivesse um pouco mais distante. Também as gentes senegalesas nos surpreendem quando nos presentearam com objectos de artesanato que pagamos com roupas, toalhas, sacos-cama.

Mas era dia de cumprir o destino: completar um percurso que em 2008 abandonou terras africanas por falta de segurança e rumou à América do Sul. Quatro anos depois, asseguramos: o desafio Portugal-Dakar foi vencido.

A Fugas acompanhou a expedição Portugal-Dakar Challenge a convite da Global Challenges – Experiences of a Lifetime

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