A utilização de procedimentos aleatórios na composição coreográfica, a partir dos anos 50, é uma das mais significativas descobertas e inovações de Merce Cunningham. Seja através de lançamento de dados e moedas ao ar ou, mais recentemente, com o auxílio das tecnologias computadorizadas, designadamente o programa aplicado à dança "LifeForms", o acaso pode determinar quer as ligações entre as frases coreográficas previamente coreografadas, quer a sua duração e desenho espacial, quer o número de intérpretes.
Quem, em 1999, visitou a exposição dedicada a Cunningham no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, recorda a fantasmagórica instalação audiovisual "Hand-drawn Spaces" (1998) assinada por Cunningham, Paul Kaiser e Shelley Eshkar e construída a partir das possibilidades das novas tecnologias de animação por captação de movimento e sua transposição para imagem virtual. "Biped" (1999), uma das duas obras a ver no dia 22, é, precisamente, um desenvolvimento deste trabalho, mas onde os bailarinos virtuais convivem com os reais. A música é de Gavin Bryars, a cenografia é dos artistas digitais Shelley Eshkar e Paul Kaiser, o desenho de luz é assinado por Aaron Copp e os figurinos são de Suzanne Gálio, que colaborou com Cunningham desde 1982 até à data em que faleceu. Fevereiro de 2000.
CAGE, JOHNEntre 1942 e 1947, Merce Cunningham cria um conjunto de solos que marcam o início de um caminho de descobertas artísticas e de uma revolução contínua na dança. Ao seu lado, como colaborador e companheiro, encontrava-se John Cage, Dos primeiros anos desta colaboração - que duraria até 1992, ano da morte do compositor - data uma das maiores transformações na arte coreográfica: a independência da dança e da música, quer no processo de criação quer no acto de apresentação do espectáculo. Cage foi director musical da Merce Cunningham Dance Company. A sua última composição para a companhia foi "Four3", na coreografia "Beach Birds" (1991).
DANÇAMovimento expressivo em si, a dança age por ela mesma, sem motivações de ordem narrativa ou psicológica - ideia que Cunningham formula de forma objectiva e simples: "A dança é o movimento no tempo e no espaço". Cunningham não gosta muito de falar sobre ela, a dança: "Sim, é difícil falar sobre dança (...) Comparo as ideias sobre dança e a própria dança àágua(...)Todaa gente sabe o que é a água ou o que é a dança, mas a sua fluidez torna-as intangíveis (...)" (Merce Cunningham, em entrevista a Jacqueline Lesschaeve, em "The Dancer and the Dance", 1991) EINSTEIN,ALBERT "Não há pontos fixos no espaço", a máxima do físico que formulou a teoria da relatividade inspirou Cunningham na des-hierarquizou e descentralização do espaço cénico. À semelhança das telas de Jackson Pollock - comparação a nível formal e até conceptual, pois ao nível das motivações o trabalho do coreógrafo distancia-se deste expressionista abstracto-as danças de Cunningham não partem nem se referem a um ponto específico no espaço.
FINNEGANSWAKENa obra de Cunningham são raras as referências explícitas à literatura, mas quando procuravam títulos, Cunningham e Cage costumavam folhear livros. Em James Joyce, sobretudo em "Finnegans Wake", encontraram inspiração para o título de várias das suas criações, entre as quais "In the Name of Holocaust" (1943), que é um jogo em torno da frase "em nome do Espírito Santo"; "Tosscd as it is Untroubled" (1944) que é uma paráfrase de "na terra como no céu"; e "Sounddance" (1974), cujo título vem da frase "No começo era a dança-som".
GRANDVERREEmbora Cunningham tenha conhecido Mareei Duchamp nos anos 40, só em 1968 colaborou com o inventor dos "ready-made". Foi Jasper Johns que sugeriu a realização de uma cenografia baseada no "Lê Grand Verre" de Duchamp. A ideia agradou a Cunningham e a Duchamp que deu autorização com a condição de não ter de trabalhar na construção do objecto. Jasper Johns responsabilizouse pela execução das esculturas de plástico transparente de "Walkround Time" - esteve em exibição em Serralves, em 1999 -, obra em que Cunningham presta tributo a um dos protagonistas da vanguarda do século XX, no filão da qual se pode inscrever o seu próprio trabalho enquanto coreógrafo.
HOW TO PASS, KICK, FALL, AND RUNAo observar seja as paisagens naturais, os animais, as pessoas numa rua ou num café, ou ao ler as palavras de um livro, Cunningham interessa-se em primeiro lugar pelo movimento. O título "HowtoPass, Kick, Fali, and Run" (1965), que foi buscar a um livro sobre futebol, sendo descritivo - mas nào necessariamente de tudo o que se passa em cena - é um dos melhores exemplos de explicitação da sua ideia de dança segundo a qual o movimento se refere a si mesmo e não a algo que lhe seja exterior. (Esta obra foi dançada pela companhia no Porto e em Lisboa em 1966).
INTERSCAPENuma das obras mais aguardadas no Porto, "Interscape" (dias 20 e 21), criada em 2000, Cunningham volta a contar, na criação do cenário e figurinos, com a colaboração do artista plástico Robert Rauschenberg e com uma partitura de John Cage, "One8", composta em 1991. Este solo para violoncelo, interpretado ao vivo por Loren Kiyoshi Dempsterpor, é a oitava peça da série "number pieces".
JOHNS,JASPERUm dos iniciadores da arte pop, foi conselheiro artístico da Merce Cunningham Dance Company entre 1967 e 1979. À excepção de "Walkround Time", JasperJohns não realizava cenografias, mas figurinos, pois achava que a dança não necessitava de cenários. Quando Cunningham precisava de um cenário, Johns preferia arranjar um outro artista que o fizesse. Frank Stella, AndyWahrol, Robert Morris ou Bruce Nauman participaram em produções da companhia por sugestão de Johns.
KOSUGI, TAKEHISADirector musical da Merce Cunningham Dance Company a partir de 1995, o japonês Takehisa Kosugi sucedendo no cargo a David Tudor que morreu em 1996 - colabora como compositor e intérprete desde 1977. Foi, em 1960, co-fundador do primeiro grupo colectivo de improvisação que apareceu em Tóquio, e, mais tarde, co-fundador, também em Tóquio, do grupo Taj Mahal Travelers. Entretanto, em Nova Iorque, criou performances multimedia e deu concertos com Nam June Paik.
LIFEFORMSPara Cunningham as possibilidades da dança são infinitas e as tecnologias (da câmara ao computador) têm-lhe permitido descobrir novas complexidades. Desde o início dos anos 90 socorre-se do programa de computador "LifeForms", criado especialmente para si, quer "para ver novas complexidades que sempre lá estiveram, no movimento, mas que nós nunca vimos (...) quer como memória de exercícios que realizamos nas aulas" (em entrevista ao PÚBLICO, 3/6/94). Muitos dos títulos das suas obras são retirados da linguagem das novas tecnologias , como "Trackers" (1991), "Enter" (1992), "CRWDSPCR" (1993) - dançadas em Lisboa-94 - ou "Windows".
MINUTIAEEm 1954, Robert Rauschenberg cria uma escultura com materiais de proveniências diversas para o cenário de "Minutiae". Esta obra marca o início de dez anos de cumplicidade entre o artista plástico e Cunningham. Como acontece com a música, também os elementos plásticos do espectáculo funcionam autonomamente em relação à dança, estabelecendo com ela relações conceptuais e estéticas, mas nunca de ilustração. Os painéis coloridos feitos de vários materiais sobrepostos que formavam uma escultura aberta que os bailarinos atravessavam foi a primeira cenografia criada por aquele que foi também o primeiro conselheiro artístico da companhia de Cunningham.
NIGHTJOURNEYCunningham foi bailarino solista na companhia de Martha Granam entre 1939 e 1945. As ideias de dança, os métodos de composição, a técnica do movimento, a concepção do tempo e do espaço descobertos por Merce Cunningham situavam-se bem nos antípodas da concepção narrativa e expressionista de Graham. Em 1958, na obra satírica "Antic Meet", Cunningham faz o seu primeiro e único comentário coreográfico crítico ao trabalho de Graham, citando com humor (e auxiliado pêlos figurinos de Rauschenberg) as poses e os sintomas das mulheres de Graham representadas em "Night Journey", uma das obras mais marcantes da norte-americana.
OCEANQuinze bailarinos num palco redondo, circundado pêlos espectadores que por sua vez são circundados por cento e quinze músicos. Cunningham concretiza em Bruxelas aquela que é a sua maior produção de sempre, "Ocean" (1994). Projecto de homenagem a Joyce - a que Cagejá não assistiu, mas cujos planos originais foram respeitados pêlos compositores David Tudor e Andrew Culver -, a música e a dança desenvolvem-se em torno do número 19, número determinado pela obra de Joyce (os dezassete capítulos de "Finnegans Wake", os dezoito de "Ulisses", e os dezanove de "Ocean").
POND WAYÀ semelhança da forma como Cunningham havia escolhido o cenário de "RainForest", também o cenário de "Pond Way" (1998) foi escolhido depois do coreógrafo ter visto uma exposição-desta vez, "Landscapes intheChinese Style" (1996), deRoy Lichtenstein, série de pinturas inspiradas em paisagens de Edgar Deqas. Cunningham pediu a Lichtenstein para desenhar o pano de fundo para "Pond Way" no estilo daquelas obras. O artista plástico faleceu antes de poder executar o cenário, mas a viúva, Dorothy Lichtenstein, sugeriu a Cunningham que escolhesse um quadro dessa exposição para que fosse ampliado como cenário. "Landscape with Boat" foi o quadro escolhido para esta obra que vai ser dançada a 21 e que conta com os figurinos de Suzanne Gálio, música de Brian Eno e o desenho de luz de David Covey.
RAINFORESTCriada em 1968 e remontada no ano passado, "RainForest", com cenografia de Andy Warhol, figurinos de JasperJohns, música de David Tudor-na sua primeira colaboração com a companhia de Cunningham - e luz de Aaron Copp, evoca, através da dança dos seis bailarinos e das almofadas prateadas cheias de hélio, o movimento livre mas contido das folhas das árvores numa densa floresta - como as florestas do Noroeste da América de que Cunningham guarda memórias de infância. A ideia de cenografia ocorreu a Cunningham depois de ver a instalação "Silver Clouds", de Warhol (apresentada por duas vezes em Serralves, na "Circa 68" e na exposição dedicada a Cunningham). O coreógrafo pediu então a Jasper Johns, na altura conselheiro artístico da companhia, que perguntasse a Warhol se ele autorizava que as almofadas fossem usadas para uma cenografia. Warhol aceitou. As almofadas voltam ao Porto, ao Rivoli, no dia 20.
SUMMERSPACETodas as danças de Cunningham recortam e expandem o espaço, mas é em "Summerspace" (1958) que o coreógrafo se focaliza especificamente sobre o espaço do movimento. Numerou os sítios de entradas e saídas de cena (num total de 6) e ligou-as em todas as trajectórias possíveis. Depois, a cada uma das 21 possibilidades encontradas fez corresponder uma frase coreográfica diferente. Ao falar com Rauschenberg, autor do cenário e figurinos, apenas lhe disse que a dança não teria centro. Rauschenberg criou então um cenário e figurinos pontilhados e de cores quentes.
TORSEA técnica desenvolvida por Cunningham centra-se no trabalho do tronco. É em "Torse" (1975), onde as configurações dos corpos são trabalhadas a partir de 64 frases coreográficas (porque este é o numero de hexagramas do l Ching), num espaço dividido em 64 segmentos, que Cunningham se concentra sobre as cinco posições do tronco definidas no seu vocabulário - "upright" (vertical), "curve" (curva), "arch" (arco), "twist" (torção) e "tilt" (inclinação)-que por sua vez são coordenadas com movimentos das pernas rápidos e em oposição.
UNTITLED SOLOConstruída em 1953, altura em que Cunningham estava a fazer os primeiros trabalhos utilizando os processos aleatórios, "Untitied Solo" revelou-se ser uma das mais difíceis por si já alguma vez dançada. Em parte, a dificuldade do solo decorria dos movimentos realizados em tensão e desequilíbrio, sendo agravada pelo facto de a ordem dos movimentos ter sido determinada por lançamento de moeda ao ar, donde resultaram sequências quase impossíveis de ser realizadas. O solo ganhou uma dimensão dramática por este facto e não porque Cunningham lhe tivesse atribuído tal intenção.
VÍDEODesde 1970 que tem coreografado vídeos e filmes em colaboração com Charles Atlas e EIliot Caplan. A câmara e os processos de montagem oferecem a Cunningham a possibilidade de construir objectos sem correspondência em cena e assim encontrar outros tempos e outros espaços para o movimento coreográfico. Da sua videografia e filmografia refira-se "Changing Steps" (1975), "Blue Studio: Five Segments" (1976) e "Points in Space" (1986), entre outros.
WINDOWSTerceira colaboração com o compositor brasileiro a residir em Lisboa, Emanuel Dimas de Melo Pimenta, "Windows" estreada em 1995, é dançada no Porto no dia 22 - vai buscar o seu título à linguagem dos computadores, o que acontecia já com outras obras em parte criadas por Cunningham recorrendo ao programa "LifeForms". Segundo o compositor, a música de "Windows", intitulada "Microcosmos", "(...) foi criada na Realidade Virtual em tempo real. Os principais instrumentos usados foram o AutoCAD, 3DS, Cyberspace Developer Kit, Avalon e Cubase" (citação retirada do livro "Merce Cunningham", coordenado por Germano Celant, e publicado também em português, em 1999, com o apoio do Museu de Serralves). A cenografia de "Windows" é construída a partir de uma gravura de John Cage, "Global Viliage 1 -36", de 1989. Os figurinos são assinados por Suzanne Gálio e o desenho de luz por Aaron Copp.