Adereços para a memória

Houve Raúl Peralta, assustador paradoxo, um misto de animal e de máquina (de matar), aspirante a dançarino e imitador dos passos de John Travolta de “Febre de Sábado à Noite” - era “Tony Manero”, o Chile em 1977, Salvador Allende derrubado, o regime ditatorial de Augusto Pinochet imposto com a ajuda da CIA. A continuar esta linhagem dos que flutuam na sociedade - uma família de personagens apolíticas e por isso, também, sem sentimentos, pactuando com a impunidade, com a ausência de moral, por isso veículos dos fascismos -, eis Mario, funcionário numa morgue.


É “Post-Mortem”, o Chile de 1974, os últimos dias de Allende. Cujo corpo há-de ser aqui autopsiado.Um e outro são os dois primeiros filmes de uma trilogia, que se completará com “No”, que o cineasta Pablo Larraín dedica ao seu país, o Chile, reconstituindo a História e a amnésia da memória - mais do que filmes que reconstituem uma era, são, como é óbvio, filmes que se interessam por aquilo que ainda vive nesta era. Tem sido um trabalho de colaboração com o actor Alfredo Castro, figura histórica do teatro chileno cuja vida e obra se confundem com a oposição ao regime de Pinochet. Cerca de 30 anos separam Larraín de Castro (que tem hoje 60 anos). O primeiro foi aluno do segundo. Não é difícil perceber (e não está só nas entrelinhas das entrevistas) que a biografia do actor - e, no caso de “Tony Manero”, também co-argumentista - faz figura de autoridade para o segundo. Como um património de memória a utilizar.

Essa relação fazia a tensão de “Tony Manero”: como se Alfredo Castro e o seu trabalho de composição - minimalismo cruel e agressivo, que fazia da personagem do imitador de Travolta um buraco negro - ameaçassem permanentemente devorar o filme. Por isso eram particularmente impressionantes as sequências de dança nesse filme: era uma personagem silenciosa a falar, era como observar o próprio acto de predação. O que se sente em “Post-Mortem” é que isso já aconteceu. Quer dizer: é como se o cineasta Larraín ficasse paralisado perante a composição do actor Castro - mais teatral do que nunca, toda ela “desenhada” -, o filme se petrificasse. É o destino, aqui, da “reconstituição de época” - algo de muito difuso no filme anterior, instala-se aqui na função de “decor”. É isso, literalmente, o que se faz no final, sequência que encerra um filme condenado a amontoar adereços.

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