Da predação

No desenlace de "O Segredo de um Cuscuz" (2007), anterior filme de Abdellatif Kechiche, éramos tomados pela angústia: um restaurante, a comida que faltava e um corpo de rapariga - Hafsia Herzi - a distrair os clientes para evitar a catástrofe. Ela dançava, dançava, e a exposição e o excesso de corpo tinham algo de sacrificial. Para nós, espectadores, era um suplemento de culpa.


"Vénus Negra", a nova obra de Kechiche, é um filme de reconstitução de época. É provavelmente um "biopic". Se calhar até é um "filme de tese". É, definitivamente, uma subida no escalão do orçamento -e, aparentemente, uma guinada num percurso de cineasta, o que fez desta a "problemática" quarta longa do realizador de "La Faute a Voltaire" (2000), "A Esquiva" (2003), "O Segredo de um Cuscuz", "filmes de bairro". Mas é, afinal, um "zoom" à mesma "cena": um corpo a dançar e a ser devorado pelo(s) olhar(es).

Esse é o caso de Sarah "Saartjie" Baartman, descendente da etnia hotentote, que foi escrava de agricultores holandeses - a família Baartman, que lhe deu o nome - na Cidade do Cabo, África do Sul. Em 1810 começou a ser exibida em espectáculos de feira, em Londres, e depois Paris, como "a Vénus hotentote" pelas características físicas da etnia a que pertencia: nádegas enormes, lábios vaginais protuberantes...

Objecto da curiosidade dos espectadores que procuravam o susto para os sentidos - espectadores do "povo", das classes altas e dos salões libertinos - mas também da curiosidade científica que assim queria encontrar provas para teses sobre a "superioridade" e "inferioridade" das "raças", Sarah, entretanto abandonada e tornada prostituta, sucumbiu a uma doença infecciosa em 1815. Os seus restos mortais - toda a região púbica - foram conservados. Ficaram expostos no Museu do Homem em Paris até 2002, altura em que o parlamento francês aprovou uma lei para os devolver à África do Sul.

É com essas imagens, da "chegada" de Saartjie a casa, que decorre o genérico final de "Vénus Negra". O que parece encerrar o filme na gaveta edificante da narrativa identitária, no "biopic" de um símbolo da exploração e da luta africanas. "Vénus Negra" é isso também, e não devemos ignorar que são essas as últimas imagens que Kechiche nos deixa. Mas até chegar aí foi também a superação disso. Nessa afirmação de contradições, ou nessa indecisão, reside, aliás, a densidade do que vemos: um filme de múltiplas camadas que insistem em mostrar-se e que regressam a cada passo do percurso, como dificuldades - a sensação de repetição, de sublinhado, de redundância...

"Filme de época" ou filme que apenas utiliza a época para falar de hoje? E "hoje" fala de quê: de uma História de predação, de um sistema de exploração entre mundos? Ou dos corpos que se entregam à espectacularização, à rapina dos olhares? Afinal: este é um filme sobre Saaetjie ou é, antes, um filme sobre quem olha e sobre o que se fabrica e consome no acto de olhar? Será "Vénus Negra" o "Saló" de Kechiche? É que progride em ciclos, também: um corpo circular de ritual em ritual, de fétiche em fétiche, ao dispôr da "educação sensorial" de quem o manipula - como se, ao subir de "nível", aumentasse a sofisticação da predação. A anulação de uma identidade, o sacrifício como "personagem" de narrativa, é um horizonte de risco de que se abeira o filme: através da "coisificação" de um corpo, fazer reflectir nele o olhar dos outros - o nosso.

Mas, objecto contraditório como é, volta sempre atrás, corrigindo-se como se tivesse sido acometido de um complexo de culpa, tentando chegar à "interioridade" da personagem. O ritual é desmentido nesses momentos pelo esboço de psicologia. Mas é verdade que o filme é mais estimulante quando aniquila a "vénus negra" do que quando quer salvar Sarah Baartman.

Esse é, de qualquer forma, o tom da viagem que aqui se faz: o permanente encontro com obstáculos, o misturar de "escalas" diferentes, do maior ao menor, da abstracção teórica ao caso exemplar. Depois da circulação calorosa de "O Segredo de um Cuscuz", qualquer coisa de pastoso. Foi um desafio.

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