David Vann perdeu o pai, e depois recuperou-o num livro

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Ricardo Silva

Durante dez anos, o americano David Vann (n. 1966) lutou com o facto de o pai ter cometido suicídio quando ele tinha 13 anos, e apenas duas semanas depois de ter recusado passar algum tempo com ele numa ilha no Alasca. Ao mesmo tempo, foi tentando passar a história para o papel. Depois de a ter terminado, não conseguiu publicá-la. Mas quando ganhou um concurso literário de uma pequena editora, recebeu esse direito. Uma crítica no "New York Times" fez o resto. E o resto é dezenas de traduções, entradas nas listas dos "melhores livros do ano 2010" das mais conceituadas publicações americanas, o Prix Médicis para o melhor romance estrangeiro publicado em França, e há dias, em Espanha, o Prémio Llibreter 2011.

David Vann passou esta semana por Lisboa para lançar "A Ilha de Sukkwan" (Ahab). Falou ao Ípsilon sobre as comparações entre o seu livro e os romances de Cormac McCarthy, sobre o poder da literatura, sobre o suicídio como tabu, e ainda sobre a sua família de mentirosos e de contadores de histórias. "A tragédia traz outro sentido à vida, e não pode ser encarada apenas pelo que nos traz de depressão, mas também pelo que nos rejuvenesce", disse.

Mais do que ter a função de cenário, a paisagem do Alasca parece funcionar, em "A Ilha de Sukkwan", como uma terceira personagem que, curiosamente, sofre alterações inesperadas.

Para mim, a paisagem é sempre muito importante. Não apenas como cenário, mas porque eu quero que ela funcione como um espelho das personagens. Quando o pai anda pela floresta, por exemplo, o que ele vê em seu redor é um reflexo do que sente, aquilo é o seu estado de ânimo. A paisagem faz coisas estranhas, muda de tamanho e de formas, altera-se, e transforma-se numa metáfora do tema principal do livro, que é a vida interior daquelas duas personagens, o pai e o filho. Mas, ao mesmo tempo, também as vai pressionando. Como se elas próprias se pusessem à prova. Ao ser tão agreste e inóspita, tão selvagem e brutal, obriga-as a estarem mais atentas, a darem mais de si, a mostrarem-se mais instintivamente.

Como em alguns romances de Cormac McCarthy...

Exactamente. Quando se lê, por exemplo, "Meridiano de Sangue" [Relógio D'Água, 2011], percebe-se que ele escolhe paisagens de uma maneira muito liberal, muito livre, sempre como uma representação. São paisagens geologicamente quase irreais, estão ali apenas de uma maneira figurativa, com um significado mais ou menos subtil. Ele diz que "a verdadeira geologia não são as pedras, mas o medo". É esta imagem em que a pedra é uma extensão do medo o que me interessa.

O que é que sente quando publicações como o TLS [Times Literary Supplement], entre outras, comparam este seu primeiro romance com livros de Cormac McCarthy?

Eu adoro McCarthy. O meu grande desejo escondido era ser eu o autor de "Meridiano de Sangue" [risos]. Não sei quantas vezes já li esse livro. Se calhar leio-o todos os anos. Mas comparar o meu livro com os de McCarthy... há um grande abismo [risos]. Nos livros dele, o perigo e as ameaças chegam sempre de fora, do mundo exterior. Na minha história, o perigo vem sempre do interior das personagens. Escrevo tendo atrás de mim uma tradição dramática, que não é a dele. Eu escrevo com um outro sentido das palavras, influenciado pelo inglês antigo, evidenciando o sentido, focando-me no que as palavras contêm, mais do que na gramática. O que eu tento fazer com o estilo, isso talvez me aproxime dele... mas eu fui influenciado por ele. Há entre nós um grande abismo... nem por um minuto penso que me possam comparar a ele... [risos]. Fico muito contente por ele me ter influenciado. E também Elizabeth Bishop [poeta e escritora americana, 1911-1979], de quem eu admiro particularmente os poemas que têm a natureza como foco. As suas descrições de paisagens são muito visuais. Quase tridimensionais. E isso agrada-me muito.

Como é que lhe surgiu esta história?

Andei a escrever este livro durante dez anos: entre os 19 e os 29 anos. E durante os 12 anos seguintes nenhum agente quis enviar a história para uma editora. Foi um longo caminho. Entretanto, tornei-me capitão de barcos de recreio. Tive uma vida completamente ao lado, esqueci a carreira de escritor, e pensei que nunca iria publicar o livro. Agora, de repente, sinto-me um homem cheio de sorte, pois quase de um momento para o outro o livro foi vendido para mais de duas dezenas de países. É quase inacreditável. A experiência da escrita foi muito penosa, tive de tornar a lidar com a história do suicídio do meu pai durante mais dez anos, tive de arranjar uma maneira de a contar. Comecei a escrevê-la quando navegava entre a Califórnia e o Havai, e durante esses 17 dias escrevi metade do romance. Depois andei dez anos a trabalhar nele. Foi um processo inconsciente, de descoberta de coisas a cada frase que escrevia. De pegar em partes já escritas mas que eu não sabia o que significavam.

Isso funcionou como uma espécie de terapia, de vontade de "exorcizar" a história do suicídio do seu pai?

Sim, mas de uma maneira singular. Penso que a terapia trabalha a verdade, mas quando se escreve é sempre sobre a beleza. A minha experiência foi uma coisa mais poderosa, mais forte do que a terapia. Escrever transformou a experiência da história da minha vida. A escrita produz um acto no mundo, um acto penoso mas cheio de sentido, uma segunda hipótese de viver de outra maneira o que já foi vivido. Escrever é para mim mais forte do que a experiência que vivi.

A história ficcionada actua então como uma espécie de redenção?

Eu não sou religioso, sou ateu. Mas a escrita tem de facto esse incrível poder redentor. E é real, não pode ser falso. O escritor, quando é consciencioso e tem talento, pega na experiência e transforma-a numa outra coisa. E essa nova coisa tem sempre mais sentido e é sempre mais forte. Eu queria afastar de mim a história do suicídio do meu pai, afastá-la da minha história pessoal, negá-la. E neguei-a durante três anos, dizia sempre que o meu pai morrera de cancro. Sentia vergonha. Mas escrevê-la fez-me incorporá-la, fez-me torná-la finalmente parte da minha história.

Acha que a literatura faz de nós pessoas melhores?

Absolutamente. Penso que a tragédia traz outro sentido à vida, pois testa-nos, mostra-nos quem somos e qual é a nossa verdadeira natureza. Uma tragédia não pode ser encarada apenas pelo que nos traz de depressão, mas também pelo que nos rejuvenesce. Em literatura temos espaço para nos descobrirmos, para nos conhecermos a nós próprios.

E esse efeito da literatura passa do escritor para o leitor?

Se o escritor for talentoso consegue passar essa transformação para o leitor. Um bom leitor é o que é capaz de diferenciar os bons dos maus escritores sentindo que um conseguiu trabalhar a experiência, enriquecendo-a e enriquecendo-se, e o outro apenas imita o real, apenas descreve a experiência. Acredito que o leitor sente isso.

Grande parte da literatura americana das últimas duas ou três décadas - e não estou a falar dos três ou quatro grandes nomes - dá por vezes a impressão de que lhe faltou tempo para se auto-examinar, para fazer um exercício de auto-consciência, deixando-se enredar em histórias familiares típicas, umas mais problemáticas do que outras. Mas o seu romance foge a esta linha, debate-se com a culpa, com a vergonha... Sente essa diferença em relação ao resto?

Eu só sei que não sou "trendy", não sou "fashion" nem "cool". Não sou o [Jonathan] Franzen [risos]. Tentei apenas seguir unidades dramáticas, controlar o número de personagens, de lugares, e não perder o sentido do tempo. Tudo como se estivesse a escrever uma peça de teatro a que acrescento uma descrição da paisagem. Estas são as minhas particularidades e as minhas obsessões. O que eu quis foi explorar situações devagar, momento a momento, como se tudo estivesse a acontecer em tempo real. As personagens estão a viver coisas difíceis. Há uma primeira parte do romance que vai até ao momento da "grande surpresa", e as 20 ou 30 páginas seguintes têm a descrição daquela experiência dolorosa do suicídio. Depois vem o corpo descrito em tantos detalhes, porque eu nunca vi o corpo do meu pai; durante muito tempo, não acreditei que ele estivesse morto. A culpa que uma personagem sente na floresta é a minha culpa, que eu examino, essa culpa que durou muitos anos, porque duas semanas antes da sua morte ele me perguntou se eu queria passar com ele um longo período no Alasca, e eu disse que não. Sentia que, se tivesse dito 'sim', o meu pai talvez ainda estivesse vivo. Carrego todo esse legado do suicídio: vergonha, culpa e negação. Não podia deixar de fazer um exame a todas essas coisas. Eram as que me interessavam. Não pretendia fazer uma análise da América, ou de uma família inteira com os seus problemas do dia-a-dia. Isso não me interessa. Interessam-me as relações primárias, neste caso, entre pai e filho. O meu próximo livro é sobre o casamento, mas foca-se apenas numa mãe e no seu filho. Sou um escritor neoclássico.

Sente-se mais próximo da literatura europeia do que da americana?

Na verdade, eu não aprecio por aí além a cultura americana. A minha visão da natureza vem dos poetas românticos britânicos. Está ligada à nossa imaginação, às nossas faculdades mentais, é um ideal. Os americanos, quando vão para a natureza, encontram apenas terror para eles próprios. O único ideal é o "sonho americano". A natureza, só por si, não tem para eles um significado. Nesse sentido, estou mais próximo da literatura europeia.

A sua dificuldade em publicar o livro deveu-se ao facto de ser uma história de suicídio? A ter a palavra suicídio no título? [Originalmente, e nas edições em inglês, o título é "Legend of a Suicide", e, para além do romance "A Ilha de Sukkwan", o volume inclui ainda mais cinco contos que funcionam como uma espécie de desconstrução pós-modernista da história principal.]

Sim, isso ficou sempre muito claro. O suicídio é um tabu. Já lhe contei que durante três anos menti acerca da causa da morte do meu pai. O que é curioso é que parece ser um tabu em todo o lado, ninguém quer falar de suicídios. Mesmo quando a primeira edição foi publicada [ainda numa pequena editora], o livro estava, por vezes, escondido nas livrarias. E antes disso o que os agentes me diziam era exactamente isso: "Gosto muito do livro, mas ninguém vai publicar um livro sobre um suicídio".

Porque não mudou o título?

[risos] Engraçado, perguntaram-me isso há pouco tempo em Londres. E acredita que isso nunca me passou sequer pela cabeça? Nunca pensei nisso. Talvez porque não fizesse sentido para mim, era o título certo. Nos EUA, quando o livro foi publicado em resultado de ter ganhado um concurso, teve apenas três críticas. Mas, por sorte, uma foi de página inteira no "New York Times" e o crítico foi muito generoso para mim. Foi uma grande ajuda, mudou a minha vida e a do livro. De repente, uma das maiores editoras americanas quis comprar os direitos, e atrás dela vieram logo outras. São algumas dezenas um pouco por todo o lado, sobretudo na Europa.

Mas o livro tem outro título fora do espaço anglófono...

Sim, mas porque inclui apenas o romance e não os cinco contos que funcionam como uma espécie de moldura. Serão publicados à parte, num outro volume. Foi uma opção editorial que me agrada. Nos EUA tiveram de entrar no mesmo volume porque o mercado não recebe bem um livro com menos de 200 páginas.

Quando pensou que queria ser escritor?

Eu venho de uma família de grandes mentirosos, de contadores de histórias [risos]. Na minha infância, o que nós fazíamos era matar coisas, quase todos os dias. Caçar e pescar. Três ou quatro dias por semana. Pescar era quase uma obsessão da minha família. O que é estranho, porque eu tornei-me num grande amante da natureza. Acho que já o era nessa altura. Era como se matasse por amor [risos]. Foi um bom ambiente para crescer com histórias. Cada vez que íamos caçar, e depois de voltarmos a casa, contavam-nos sempre a história daquilo que acontecera, cheia de detalhes, em várias versões. E faziam o mesmo com as vidas deles. O meu avô enganava a família. O meu pai contava histórias da minha madrasta que não eram verdade, pois ele entrou na vida dela muito mais tarde e não podia ter vivido aquilo que contava. E a família continuou a mentir sobre ela, e também sobre ele, durante décadas. Aliás, os contos que fazem parte do livro publicado em inglês são diferentes versões da mesma história, por vezes radicalmente diferentes. Sempre ouvi assim as histórias, nunca eram iguais, pouca coisa se mantinha inalterada. Nasci numa família que foi sempre uma contadora de grandes mentiras sobre a vida e de pequenas mentiras sobre pescar e caçar. E, talvez por isso, sempre tive a ideia de contar histórias, de ganhar a vida com isso. Mas tal não aconteceu no tempo que eu esperava, e tive de fazer outras coisas, como ensinar, ou ir para o mar como capitão de barcos de recreio e não só.

Agora, para além de escrever [está a terminar o terceiro romance], é professor de escrita criativa na Universidade de São Francisco. O que é que ensina aos seus alunos? O que aprendeu ao escrever as suas próprias histórias?

Falamos de um modo geral sobre como funciona a literatura, e em detalhe sobretudo sobre estilo - como é que o estilo funciona -, e falo de linguística, do inglês moderno e do inglês antigo, como é que as coisas se passam em termos de sintaxe. Falo também do negócio dos livros e da escrita, apesar de nunca se saber de que é que o público gosta. De nunca se saber se um livro vai funcionar bem ou mal. O que eu ensino aos meus estudantes é a serem melhores leitores. A escrita criativa só pode ensinar isso. O talento não se ensina.

O seu livro é uma espécie de carta para o seu pai?

Absolutamente. Foi uma decisão inconsciente que me levou anos a perceber. Vejo agora claramente que o que lhe queria dizer é que teria sido suficiente eu amá-lo em vez de tentar compreendê-lo. Eu estive muitos anos zangado com ele, e tornei-me egoísta, com pena de mim próprio. Isso foi o mais difícil, e eu não percebia porque é que não lhe era suficiente eu e a minha irmã o amarmos. Quando eu escrevia, era como se o fizesse para não o esquecer. Parecia-me que se o fizesse lhe estava a provocar uma segunda morte. O que o livro tenta é trazê-lo de novo à vida, porque não quero uma segunda morte. É o poder redentor da literatura.

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