Um teatro a sul do tempo

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Um português, dois espanhóis e um italiano encontram-se numa oficina de Commedia dell'Arte em Itália e decidem fazer um espectáculo juntos. Querem criar um teatro itinerante, despojado, para todos os públicos, assente no trabalho do actor, no espírito das antigas companhias do Sul da Europa. No ano seguinte, estreiam em Casablanca "Ki Fatxiamo Noi Kui" - "o que fazemos nós aqui", em italiano disfarçado -, espectáculo em que quatro Zanni vindos da guerra (o Zanni é uma das personagens da Commedia dell'Arte) se deparam com um estrado e começam a brincar. E assim nasceu, em Marrocos, o Teatro Meridional. Quase duas décadas depois, este mês, estreou na sala Garrett do Teatro Dona Maria II um espectáculo sobre o antes e depois do ano em que Portugal mudou de regime - "1974". Do quarteto fundador, resta o português, Miguel Seabra, actor, encenador, professor de teatro, director do grupo.

O projecto iberizou-se logo a seguir à primeira criação, com a partida de Stéfano Filippi, o italiano. O espectáculo seguinte, cuja ideia assentava como uma luva à companhia, é "-aque, ou sobre Piolhos e Actores", o texto de Sanchis Sinisterra sobre uma dupla de actores famintos na Espanha dos Currais de Comédias. Até ao final da década, recebem prémios, fazem digressões, ganham as atenções do público e da crítica. Em 2000, o Meridional faz "uma espécie de Tratado de Tordesilhas", como diz Miguel Seabra, e divide-se em dois ramos, um em Espanha, constituído por Alvaro Lavín e Julio Salvatierra, e outro em Portugal, com Miguel Seabra e Natália Luiza. O grupo lusofoniza-se, obtendo sucesso com espectáculos sobre as lembranças de imagens e sons do país - "Para além do Tejo" (2004), "À Manhã" (2006), "Por detrás dos Montes" (2007) - e revelando uma costela africana com "A Varanda do Frangipani", ainda em 1999, "Mar Me Quer" (2001), "Mundau" (2003), "Geração W" (2004), "A Montanha da Água Lilás" (2005) e "Lisboa Invisível" (2008). Ao mesmo tempo, continua a fazer espectáculos a partir das técnicas da Máscara, do Clown e da Commedia dell'Arte e encena as duas principais peças de Beckett, "Endgame" (2004) e "Waiting for Godot" (2006), que pode não parecer mas têm tudo a ver com memórias de actores. As inúmeras viagens pelo país fazem do Meridional uma das mais relevantes companhias de digressão portuguesas e tornam o grupo um caso nacional. Em 2005 conseguem um espaço próprio, na antiga Galeria da Mitra, em Lisboa, ao Poço do Bispo. O código genético do grupo parece estar nos dois primeiros espectáculos: a identidade territorial - seja do sul da Europa seja da lusofonia -, colocada em cena através de jogos teatrais, quase sem palavras em "Ki Fatxiamo Noi Kui", pleno de verbo em "-aque", o segundo espectáculo. O Teatro Meridional conseguiu uma síntese feliz entre referências e contexto portugueses, mas nada provincianos, e uma linguagem artística própria. É uma das companhias com mais internacionalizações. O grupo era candidato ao Prémio Europa (que este ano também distinguiu a encenadora britânica Katie Mitchell e noutras edições Pippo Delbono, Rodrigo Garcia e François Tanguy) desde 2007. O júri valorizou a "atenção antropológica para com a vida humana em geral, afirmando, por outro lado, a dignidade humana e reivindicando a tolerância e a aceitação do Outro". Foi este Outubro. Por alguma razão, calhou na época em que decidiram enfrentar os últimos 80 anos de história nacional com "1974".

Num país estrangeiro

Durante muito, muito tempo, a humanidade não teve telemóveis. Em países da Europa, por exemplo, cafés e praças eram lugares que se enchiam de amigos, amantes e inimigos a horas marcadas. Era possível contar com a presença dos outros em dias específicos do ano, do mês ou da semana. Mais de metade da época tratada por este espectáculo passa-se nesse tempo tão longínquo que parece que foi num país estrangeiro. E foi. Este "1974" é um ano paralelo ao nosso, noutra dimensão. A do palco meridional, talvez. O trabalho da companhia foi o de dar espessura a esse universo paralelo. Os sons e a música, a luz e as imagens evocam retratos de Portugal no imaginário do espectador. Mas o trabalho de despojamento cénico característico do Meridional serve sobretudo para dar volume e forma à área do palco, moldando a altura, largura e profundidade da cena de modo a recriar um ponto de vista, radicalmente subjectivo, sobre o antes e depois de 1974. É um ponto de vista colectivo, e como tal laboriosamente inventado durante os ensaios e sedimentado a partir de improvisações dos actores, negociado com a memória cultural do encenador, claro está, mas também com o que cada membro da equipa trouxe ora como mote, ora como glosa, para estúdio.

Como na praça de Peter Handke, da peça "A hora em que nada sabíamos uns dos outros" (um texto sem palavras, feito apenas de indicações para os actores), as figuras recriadas em "1974" deambulam por um espaço e tempo comuns apresentando fragmentos da história pessoal que coincidem com a história do país. Mas, ao contrário do texto austríaco, este espectáculo devolve ao espectador, reapropriadas pelos corpos e rostos dos actores, as memórias de um breve momento de comunhão absoluta, que mal rompeu com a vida salazarenta de antes do 25 de Abril logo se esfumou diante dos olhos dos portugueses. O facto de essa experiência de paralisia, ruptura e dispersão só poder ser reconstituída da melhor maneira em palco, sem palavras, mas com recurso a estímulos sensoriais dispostos com mestria, parece ser o segredo do adesão a este espectáculo. O autor de um dos mais fiéis e fulgurantes testemunhos artísticos desta transição, José Mário Branco, é o responsável pela sonoplastia e música deste espectáculo, ele que já era co-inventor da banda sonora real dos portugueses. O fruto deste trabalho é uma poética da presença, que consegue tocar onde poucos chegam. É o espectáculo que o teatro português pedia já há que tempos.

Miguel Seabra conta que, no tempo da ditadura, quando ia de viagem a Badajoz com os pais, cerca de um quilómetro antes da fronteira tinham de ficar em silêncio total. Que tipo de emoções ficarão gravadas nesses minutos sem palavras? Este espectáculo, como outros do Meridional, parece programado para abrir essas caixinhas de lembranças que fazem a síntese entre a forma colectiva do regime em vigor e a experiência pessoal dessa vigência. As formas teatrais do Meridional estão a sul: no coração, mais do que na mente, no tronco e nos membros, mais do que na cabeça. Um outro tempo, outra respiração, criado em palco para fruição dos demais.

Lógicas de criação

O documentário de Patrícia Poças sobre o espectáculo "Para além do Tejo" dá a ver os métodos do grupo. Os criadores começam por se colocar problemas. Como retratar o tempo do Alentejo, com as suas características, relacionadas com o clima, o espaço, a distância, o horizonte? Ou, em "1974", "como falar de um país inteiro, quando nós próprios nem sempre conseguimos determinar quem somos?". A resposta será dada pelo espectáculo, agregado final de um conjunto de processos que determina a jogo dos actores em palco, e vai acabar por constitui algum tipo de ficção. A ambição é dar essa resposta de forma singular, trabalhando com os actores para encontrar as soluções em conjunto - condição sem a qual o espectáculo não se dá. Os actores recolhem imagens, sons, ideias e sensações que podem ser usados no ensaio, e que darão origem a fragmentos ou cenas.

As figuras cénicas do Meridional evoluem num espaço que dispensa referências directas ao mundo exterior, apresentando-se como potente, por si só, para propiciar o jogo entre actores. É desta interacção própria que se originará o mundo, não como narrativa de casos particulares, mas como fábula de casos gerais, povoada de arquétipos e mitos em carne e osso. Marta Carreiras, cenógrafa habitual, parece concretizar essa visão. Na cena de "Waiting for Godot", a árvore de Beckett irrompia pelo tablado como se tivesse germinado no sub-palco. Em "Contos em viagem: Cabo Verde", o chão de Carla Galvão era "a metáfora para um cais - um local de permanentes partidas e chegadas", notou o crítico Rui Pina Coelho. "1974" parece levar mais longe esta possibilidade, ao sintetizar o antes e depois na forma de uma carga ora suspensa ora derrubada, ora provisória ora definitiva, que estabelece as regras do jogo.

A selecção meridional

O Meridional não tem actores residentes. Como constrói os espectáculos a partir das improvisações do elenco, a escolha dos intérpretes é determinante. Miguel Seabra e Natália Luiza são dos poucos criadores que se dispõem a procurar jovens talentos e construir os espectáculos a partir deles. A escolha recaiu em onze actores nascidos em sete cidades diferentes - uma amostra da população que nasceu à volta de 1974. À excepção de Carla Galvão, colaboradora regular, todos trabalham com o grupo pela primeira vez. De onde vieram eles? Alguns das escolas e dos grupos independentes do Porto: Susana Madeira, Rui M. Silva, João Melo, Inês Mariana Moitas e Inês Lua. Filipe Costa veio de Coimbra, Cláudia Andrade estudou em Barcelona. David Pereira Bastos, Emanuel Arada e Miguel Damião trabalham em Lisboa desde os anos 2000. Todos vinham fazendo trabalho de mérito, e algumas actuações de destaque, nas respectivas cidades. João Melo é um dos actores mais versáteis do Porto, Inês Mariana Moitas uma força da natureza, Susana Madeira um talento a roubar a cena discretamente. Filipe Costa, também músico, é um intérprete fascinante, que fez um Peer Gynt memorável no seu exercício de finalista, em Coimbra (numa encenação de Antonio Mercado). Agora, são co-autores deste espectáculo. Há sete anos, "Para além do Tejo" mostrou que Adriano Carvalho, Carla Galvão, Gonçalo Waddington, Mónica Garnel, Nuno Lopes e Romeu Costa eram dos mais brilhantes da sua geração. E depois de "1974"?

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