Suu Kyi já está em liberdade e agora terá de unir a oposição
Aproxima-se serenamente do gradeamento encarnado que separa os jardins da sua casa da rua, onde estão dois mil apoiantes à espera. Com toda a tranquilidade ajeita as flores com que enfeita o cabelo, como sempre, apanhado atrás. Erguem-se braços no ar, com câmaras fotográficas ou em aplausos. Há anos que a mais carismática dissidente da Birmânia - e uma das mais famosas prisioneiras políticas do mundo, se não mesmo a mais famosa - está proibida de se dirigir a uma multidão. As suas palavras serão difíceis de entender no meio de gritos de boas-vindas, mas o repórter da Reuters ouviu isto: "Devemos trabalhar juntos. Só assim iremos atingir o nosso objectivo... Quando chegar a altura de falar, não se calem."
Depois, a líder da Liga Nacional para a Democracia (LND) regressou a casa para a primeira reunião com o seu partido em quase sete anos. Hoje, deverá encontrar-se com apoiantes.
Havia dúvidas sobre se a junta militar iria impor alguma restrição à liberdade de movimentos de Suu Kyi, que na quinta-feira fez saber que não aceitaria uma libertação condicional. Ontem, um responsável assegurou sob anonimato à AFP: "Ela é totalmente livre, não há qualquer condição."
Isto não quer dizer que se mantenha assim. É certo que estará sempre sob "vigilância apertada"; e "se for demasiado directa quanto às irregularidades das eleições [do dia 7], provavelmente será outra vez acusada de alguma coisa", declara ao PÚBLICO Diane Mauzy, especialista em Sudeste Asiático da University of British Columbia (Canadá). "[O generalíssimo] Then Shwe não a suporta."
A última das suas penas de prisão domiciliária terminava em 2009, mas um incidente com um americano que apareceu em sua casa atravessando a nado o lago que a rodeia deu o argumento à junta que os termos da sua detenção tinham sido quebrados. Foi condenada a outros 18 meses, o tempo suficiente para ficar impedida de participar nas eleições.
A maior ameaça individualMas nem os últimos sete anos de clausura esvaneceram o seu papel como factor de unidade de todos os que se opõem à ditadura militar. "Ela continua a ser a maior ameaça individual, [ainda que] colectivamente os monges representem uma ameaça maior", continua Mauzy. Em 2007, a "revolta de açafrão" dos monges budistas resultou em 31 mortos e 74 desaparecidos, e em centenas de detenções. A Birmânia ocupou durante semanas as primeiras páginas da imprensa internacional.
O país não conheceu ainda a abertura política pela qual Suu Kyi luta há mais de 20 anos. Mas algumas coisas mudaram. Há exactamente uma semana, os birmaneses foram chamados às urnas para as primeiras legislativas em duas décadas. Não tanto para uma partilha de poder entre militares e oposição (o vencedor foi o Partido da Solidariedade e Desenvolvimento da União, pró-regime), mas sobretudo para uma redistribuição dos poderes dentro da junta militar, salientava o Bangkok Post.
O diário vê um papel muito especial para a Nobel da Paz. "Ela deve aproveitar esta oportunidade para juntar as várias facções da oposição e das minorias étnicas. Uma tarefa difícil." Sobretudo tendo em conta esta realidade: em duas décadas de activismo, Aung San Suu Kyi tem pouca experiência de vida política no terreno porque passou 15 anos detida.
"Não sei que papel vai poder desempenhar. Tentará unir a oposição", diz também Mauzy. "Tem a autoridade moral, mas poucas opções."
Com o boicote da LND às eleições - que Suu Kyi acusou de serem uma farsa, em coro com vários responsáveis e analistas internacionais - o partido teve de ser desmantelado e um outro grupo, que defendia a participação, emergiu. "Participar ou boicotar, ela tinha um dilema. E está agora a tornar-se, aos 65 anos, uma espécie de "já era"", continua Mauzy. "Começam a surgir histórias de a Birmânia andar para a frente sem ela."
As legislativas vieram dividir o campo democrático entre uma facção mais velha que não aceitou compactuar com o novo sistema arquitectado pela junta (para o que diz ser uma transição para o regime civil) e uma ala mais jovem que considera que as eleições são preferíveis a um vazio absoluto de participação.
De qualquer forma, a Nobel da Paz vai dar uma voz poderosa ao campo pró-democracia e reacender o debate sobre a utilidade das sanções internacionais contra o país (que sempre defendeu), adiantava a Reuters.
Alguns observadores são da opinião de que a sua libertação melhorará a imagem da junta perante a comunidade internacional, levando a uma reavaliação das sanções à Birmânia (há meio século era um dos países mais prósperos do Sudeste Asiático e o maior exportador mundial de arroz, mas agora um terço da população vive abaixo do limiar da pobreza). O mais provável é, no entanto, que o Ocidente espere por mais mudanças no país, até porque ainda há 2100 presos políticos.