As aventuras intelectuais de Malcom Gladwell

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Malcom Gladwell

Há uma pergunta que Malcolm Gladwell detesta: como surgem as ideias para as suas histórias? Detesta não porque a resposta contenha algum segredo, alguma fórmula que não queira revelar, mas porque não sabe a resposta. Não se lembra. E irrita-o que alguém esteja interessado no que não tem importância nenhuma: no caso das suas histórias, o que importa é o ponto de chegada, não o de partida. "Eu definiria este género como 'histórias de aventura intelectual'", explicou Malcolm Gladwell ao Ípsilon, numa entrevista por telefone. "Sigo exactamente as mesmas regras de uma história de aventuras, em que se pretende um relato emocionante, que prenda o leitor, conduzindo-o por um percurso físico. A diferença é que eu o guio através de um percurso intelectual. Outros escritores apresentam-nos sequências de cenários exóticos. O que eu pretendo é explorar ideias, de uma forma excitante".
Mas analisemos o processo de construção de uma das histórias do livro "O que o Cão Viu", agora publicado em Portugal pela Dom Quixote. Apenas uma, já que a dissecação desagrada ao autor e pode comprometer o prazer da leitura (e a eficácia da persuasão, embora Gladwell garanta que nunca tem esse objectivo). O texto de "O Erro de John Rock" está dividido em cinco partes. A primeira é sobre as convicções católicas de Rock, um cientista nascido em 1890 que foi o inventor da pílula contraceptiva. A segunda começa assim: "Em 1986, uma jovem cientista chamada Beverly Strassmann viajou para África para viver com a tribo dogon do Mali". O início da terceira: "Em 1980 e 1981, Malcolm Pike, um especialista em estatística médica da Universidade do Sul da Califórnia, passou seis meses no Japão a estudar na Comissão de Vítimas da Bomba Atómica". As partes 4 e 5 contêm as conclusões da tese de Gladwell, e também o final da história de John Rock. Que são, em suma, o seguinte: o cientista, para agradar à Igreja Católica, inventou uma pílula que reproduzisse os ciclos menstruais "naturais" da mulher. Sendo "natural", poderia contar com a aprovação do papa, à semelhança do que já tinha acontecido com outros métodos contraceptivos "naturais", como o do calendário. Só que o que Rock pensava ser "natural" afinal não o era. Foi esse o seu erro.
"O ponto de partida para esse texto foi uma informação que me chegou de que as mulheres nas sociedades tradicionais tinham, durante a vida, quatro vezes menos períodos menstruais do que as mulheres modernas", diz-nos Gladwell. "A partir daí, comecei a explorar todas as implicações disso, e cheguei a John Rock". Que se tornaria o protagonista da história.
Gladwell foi investigar a história do médico, que já era uma sumidade na sua área quando inventou a pílula. O novo medicamento foi aprovado nos EUA em 1960, mas em 1968, na encíclica "Humanae Vitae", o papa Paulo VI proibiu os contraceptivos orais e todos os outros métodos "artificiais" de controlo da natalidade.
A partir daí, a luta de Rock foi demonstrar que o seu método era "natural". "Na mulher saudável, é a progesterona que impede a ovulação e estabelece o período seguro pré e pós-menstrual", escreveu na época o cientista. Ora a pílula não é mais do que progesterona, a hormona produzida pelo organismo da mulher depois da ovulação, para impedir os ovários de libertarem novos óvulos e, assim, favorecer a gestação.
A verdade é que, tomando a pílula, as mulheres não precisariam de menstruar todos os meses, mas apenas três ou quatro vezes por ano. Para simular os ciclos "naturais", porém, Rock prescreveu a administração do comprimido com interrupções mensais, que provocam a menstruação.
Acontece que investigações ulteriores mostraram que os ciclos mensais estão longe de ser naturais. É aí que entra o trabalho de Beverly Strassmann, a cientista que viajou para o Mali. Numa entrevista a Gladwell, explicou como as mulheres da tribo dogon menstruam, durante toda a vida, apenas 100 vezes, em média, enquanto nas mulheres ocidentais isso acontece entre 350 a 400 vezes. As dogon menstruam menos porque passam a maior parte do tempo grávidas ou a amamentar. E era isso que acontecia com todas as mulheres do mundo até à "transição demográfica" de há 100 anos atrás. Ou seja: o que é "natural" é ter o período 100 vezes durante a vida. Ter 400 multiplica, como Gladwell confirmou e explicou em entrevistas com outros cientistas, as probabilidades de contrair cancro do útero, do endométrio e da mama, além de outras doenças. Ou seja, milhões de mortes por cancro poderiam ter sido evitadas se John Rock não tivesse, para agradar ao Papa, obrigado as mulheres a menstruarem desnecessariamente todos os meses, por se pensar que isso era "natural".
Malcolm Gladwell nunca chega a expor a conclusão desta forma explícita. Deixa que o leitor a formule apenas na sua cabeça. "Eu não tenho nenhum propósito de persuasão. Não exijo que o leitor concorde comigo. Levo-o até um certo lugar, porque acho interessante ir até lá. Depois ele que decida. Fico satisfeito apenas por ele me acompanhar na viagem. Não preciso de mais. O que pretendo é levar as pessoas a explorar assuntos que de outra forma não lhes interessariam. Sabe, algumas das ideias que acho mais estimulantes são ideias com que não concordo", diz.
A favor do jornalismo
Os temas de Gladwell, designadamente os dos artigos publicados na revista "New Yorker" durante mais de dez anos e agora reunidos nesta colectânea, são muito diversos. Vão desde o "ketchup" (por que razão nunca surgiu uma marca melhor do que a Heinz?) até à importância da cor dos cabelos na história da América e às semelhanças entre uma mamografia e as fotografias aéreas dos militares. Mas têm em comum o facto de conterem revelações surpreendentes sobre a nossa vida quotidiana. E fazem-no, na maior parte das vezes, sem recorrer a investigação própria. Pelo menos segundo o conceito tradicional de investigação. Mas isso está a mudar. Um dos textos do livro é precisamente sobre plágio. "Hoje, por causa da Internet, é muito fácil ter acesso às ideias das outras pessoas. É fácil copiá-las, e isso é hoje um problema grave nas universidades. Mas o outro lado desta realidade é que permite brincar com as ideias dos outros, transformá-las. Por isso a maneira como entendemos o plágio e o direito de propriedade intelectual tem de mudar. Se construirmos uma cerca em torno das nossas ideias, isso inibe a criatividade e o progresso", argumenta.
Ou seja, a originalidade de Gladwell é saber conjugar as ideias de outras pessoas. "Existe hoje um volume avassalador de informação. E o que um jornalista deve fazer é descobrir as narrativas e as teorias que dêem sentido às coisas. Temos de cruzar várias disciplinas, para produzir um discurso que seja útil. É uma função que há 50 anos não era necessária, nem possível. Penso por isso que os jornalistas são mais importantes e úteis no mundo moderno do que alguma vez foram".
Num dos artigos ("Segredos Conhecidos de Todos"), Gladwell questiona, aliás, a natureza da própria investigação jornalística. Analisa o caso da falência da empresa Enron e o facto de ninguém o ter previsto. Ou melhor, de ninguém com poder de decisão o ter previsto. Na realidade, um grupo de estudantes fez um trabalho em que, recorrendo a ferramentas estatísticas, percebeu tudo o que se ia passar. Colocaram as conclusões no site da universidade, mas ninguém as leu. Os analistas encartados, por seu lado, não previram nada.
A ordem no caos
Gladwell usa a distinção entre "quebra-cabeças" e "mistérios". Os primeiros são como puzzles a que faltam algumas peças. Os segundos são irresolúveis porque há informação a mais. O caso Watergate era um quebra-cabeças. Hoje, a maioria dos problemas são mistérios. A informação está toda disponível. Difícil é seleccioná-la e relacioná-la. "Woodward e Bernstein nunca teriam desvendado a história da Enron", conclui Gladwell. O papel dos jornalistas hoje é outro. A informação surge do relacionamento entre várias ideias ou factos já conhecidos.
"Eu procuro histórias para dar vida às ideias", explica o jornalista. "Sim, considero-me um jornalista", acrescenta. "Penso num tópico, e trago-o para a discussão, que depois se desenrola de formas que não tínhamos previsto". Os artigos incluem sempre histórias de pessoas, teorias científicas, "background" histórico, livros. "Sou um grande entusiasta do mundo académico", explica Gladwell. "Tenho fascínio pelos professores, pelas pessoas que investigam, que produzem ideias. Trato-os como personagens, como amigos. Parte do meu trabalho consiste em estar atento ao mundo académico e usá-lo para contar histórias. E talvez a sua especificidade esteja aí: a combinação do 'storytelling' com o rigor académico".
Mas nem todos, quer na comunidade jornalística quer na comunidade científica dos EUA, concordam com isto. Há quem critique Gladwell pela falta de rigor científico, ou até pelos seus intuitos manipuladores. "O que eu faço não é ciência", sublinha ele ao Ípsilon. "Não me sinto parte do meio académico. Fazer ciência social requer níveis de rigor, treino e disciplina que eu não tenho. Vejo-me antes como uma porta para a ciência. O meu cenário ideal é que alguém, por ler um artigo meu, vá depois ver os estudos originais".
Alguns cientistas acham que é impossível reduzir ideias complexas à simplicidade de um artigo de revista. Antes de escrever, Gladwell passa semanas, ou meses, a ler sobre os assuntos que vai tratar. Mas acredita que "para audiências mais vastas é preciso fazer escolhas": "A maior parte dos cientistas compreende isso. Eles sabem que o meu trabalho é diferente do deles. Eu posso brincar com as ideias, escolher o que me apetece escrever, divertir-me. Não estou submetido à disciplina do mundo dos académicos. O que eu peço aos cientistas é: dêem-nos teorias que possamos usar para dar sentido a isto ou àquilo".
Há um novo pensamento interdisciplinar, que está a contagiar todo o mundo do conhecimento. "Economistas usam ferramentas da psicologia e da sociologia, e estão a escrever sobre isso. Todo esse cruzamento é muito positivo". Mas os jornalistas, pensa Gladwell, podem ir ainda mais longe. "O seu papel é produzir um discurso com sentido. Trazer ordem ao caos".

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