Douglas Coupland chegou a Portugal numa altura em que, para fazer uma chamada local (num telefone fixo!), ainda não tínhamos de marcar o indicativo. Cioso, o "New York Times" ainda escrevia, a seguir à palavra "Internet", a frase explicativa "a rede global de computadores". A "Geração X" que o escritor canadiano dissecou no seu primeiro livro, em 1991, ainda era uma cultura emergente, fascinada pela tecnologia. Mas, logo aí, o seu amor pela cultura popular transformou-o num gerador de imagens, de termos e de estilos narrativos que só podia redundar nisto: Douglas Coupland como personagem, ele próprio, dessa cultura popular "techie".
O facto não lhe escapou e, no seu penúltimo romance - "jPod", publicado em Portugal em 2009 pela sua chancela habitual, a Teorema -, ele era personagem. Uma personagem que servia exactamente como reflector, como a imagem de que outra personagem, Ethan, precisava para se definir. Escreveu-se na "rede global de computadores" que era chegado o momento da couplandização de Douglas Coupland. O homem que criou o termo McJob (o McEmprego), que se tornou o perito de serviço para qualquer tema sobre a geração que sucedeu aos "baby boomers", sobre a "sua" geração X, cristalizava-se.
A auto-descrição era, obviamente, satírica. Leia-se em "jPod" sobre o encontro de Ethan, num avião, com o meta-Douglas Coupland: ele era um egoísta unidimensional de olhos frios que pareciam "poços cheios de bebés afogados". E eles, as personagens, sentiam-se como "refugiados de um romance do Douglas Coupland", figuras perdidas num mundo de "fast-food" e Internet, Ikea, celebridades vácuas, consumo, consumo e mais consumo (com algum existencialismo).
Ao longo dos últimos 20 anos, Coupland perguntou-se por todos nós: "O que é que tudo isto significa?" Estamos todos tão ligados que corremos o risco de ficar "offline" para sempre, ou simplesmente desligados uns dos outros, diz-nos nesta entrevista por e-mail cheia de ingredientes Coupland: "Visitei o vosso site. Foi a primeira vez que visitei um site .pt".
A cultura pop é essencial na sua escrita. Sente-se um curador, um comissário de tudo quanto é pop(ular) neste mundo de alta e baixa arte, de superabundância e preguiça?
Não sei se [podemos falar de] curadoria. Estou sempre à procura de coisas que são tão grandes que não reparamos nelas.
Pensa que a cultura popular está a tornar-se cada vez menos global e abrangente. Devíamos acarinhá-la como uma espécie de denominador comum que (ainda) une a nossa civilização?
Acho que devemos acarinhar quaisquer resquícios de globalidade que ainda tenhamos. Está tudo a começar a desintegrar-se.
Em "jPod", Coupland era também um saqueador, um vampiro das novidades, alguém que caçava furtivamente o que os outros protegiam (neste caso, a estória de Ethan, mas também o portátil com informações sobre o novo projecto da sua empresa de videojogos).
"jPod" era uma espécie de "Inforescravos" (1995) para a geração Y (os bebés do novo milénio, a geração que pergunta "why", ou melhor, "why not?"), que já nasceu num mundo "wireless". Há um mês, quase 20 anos de "gadgets" e mudança depois de "Geração X - Contos para uma Cultura Acelerada", chegou às livrarias portuguesas "Geração A", o mundo Coupland sem abelhas. É uma imagem, um símbolo, para um mundo que o autor considera estar a desagregar-se.
O que pensou quando foi vendo notícias sobre o risco de extinção das abelhas? O que é que a sua potencial extinção simboliza para si?
Como seres humanos, se soubéssemos que tínhamos de escolher entre as abelhas e os telemóveis, escolheríamos telemóveis. A morte das abelhas certificaria a estupidez humana.
À nossa frente está a pilha de livros de ficção - e o não-ficção "Polaroids de Figuras Extintas" (1996) - de Coupland. De forma intermitente mas regular até "jPod", a riqueza também gráfica dos romances do canadiano nascido numa base militar na Alemanha (é um "army brat") e residente em Vancouver é um traço hoje longe de ser único. Imagem, código binário, sequências de números para encontrar o único que não é primo, elementos de videojogos seminais, notas de rodapé, cartoon. Para os leitores de 1991, ele era tudo isto. Esses leitores (e voltamos ao "New York Times" de 1994) "tendem a ser universitários e pessoas na casa dos 20 e no início dos 30, alimentados por computadores pessoais, MTV e o grunge, esgotados e desconfiados da publicidade e dos mass media, cépticos quanto ao futuro".
Esta é Coupland como a voz de uma geração, o megafone que representaria todos os nascidos até 1981. Para irritação do autor, que se confronta com o monstro que criou ao fazer a exegese de um modo de vida de forma tão clarividente. E para irritação dos outros, o que também galvaniza Coupland. Kurt Vonnegut, 1994: "Então, jovens cretinos, querem um nome para a vossa geração? Se calhar não. Só querem empregos. Certo? Bem, os media fazem-nos a todos um favor tremendo quando vos chamam Geração X, certo? A dois cliques do finzinho do alfabeto. Aqui vos declaro Geração A, tão no princípio de uma série de admiráveis triunfos e fracassos como, há tanto tempo, Adão e Eva". E assim começava a prédica do romancista humanista Vonnegut numa universidade, e assim se dá o mote para "Geração A". Que pode começar tudo novamente.
A informação ou a vida
Hoje, quem são os leitores de Coupland? Quais as suas histórias? Há quem as conte, de um ponto de vista especial (todos temos um e os escritores sem ponto de vista são como consolas sem jogos), numa linhagem que pode ir dar a Coupland - pensamos, por exemplo, em Jonathan Safran Foer. Mas, 20 anos depois de "X", "A" coloca novamente ênfase nas histórias pessoais, num mundo sem abelhas em que as pessoas de díspares partes do mundo são unidas por uma picadela. Pessoas mais ou menos fascinadas pela cultura american(izad)a, pela religião e pelo World of Warcraft. E disparadas de um canhão para o estrelato pútrido do século XXI que ainda deve a Warhol os 15 minutos de fama - já agora, para Coupland o termo geração X é a sua "lata de sopa Campbell".
Quem são, perguntando melhor, as personagens de "Geração A"? Que mundo as forjou? O caos (presumindo que o escritor acha que ele existe na overdose de informação do século XXI) estimula a criatividade? "Lembro-me de quando os vídeos de rock eram importantes para a cultura. Parece estranho como um pouco parecia tanto nessa altura", escreve-nos Coupland, numa resposta invulgarmente longa para um autor cujas entrevistas tendem a ser... poupadas. "A minha 'personal trainer' nasceu em 1983 e perguntou-me porque é que ouvíamos música tão horrível, e eu disse-lhe que a verdade é que não havia assim tanto por onde escolher. Não havia Internet, só a rádio para descobrir música. Ela achou que isso soava muito entediante e triste. E tem razão. Vejo opções, e não caos, no mundo actual".
É o "zeitgeist" de um futuro-presente para um homem que pareceu sempre cantar os êxitos e os deliciosos enigmas da tecnologia, mas que hoje também revela a sua preocupação com o que ela nos trouxe nos últimos 20 anos. Sem conservadorismos, apenas analítico.
Qual é a sua relação com a tecnologia? Nos anos 1990 era elogiado por ser fluente na linguagem tecnológica e quase um cidadão da nação PC [embora o facto de viajar com um Mac fosse digno de nota nos jornais]. E agora?
Tento não usar demasiadas coisas. Acredito que ou temos informação ou temos uma vida, não podemos ter ambas. Por isso construo uma vida fora da "infocloud" [nuvem de informação online].
Como cronista, como foi ver a subcultura "tech" tornar-se "mainstream"?
Não é tanto o facto de a cultura "tech" se ter tornado "mainstream". É o facto de a cultura "tech" se ter tornado "a" cultura.
Seja. É "a" cultura. Apesar do seu aparente desligamento, Coupland está por aí a partilhar no Twitter vídeos de marmotas a comer bolachas, a expor a sua "orca digital" no centro de convenções de Vancouver, a desenhar uma colecção de roupa a partir da herança canadiana, a manter-se longe do Facebook ou do MySpace, a fazer ninhos de vespas como projecto e arte com os seus próprios livros. É um "multitasker", um homem da cultura "crossover", até do "mash-up". Gostemos ou não dos anglicismos.
"Tudo o que faço é um projecto artístico em que o resultado final é papel ou tecido ou plástico ou madeira ou... Se eu tentar segmentar o meu cérebro, a única coisa que isso faz é fazer-me questionar por que é que as pessoas pensam que dividir é uma ideia assim tão porreira. É muito limitativo. A maior parte das pessoas poderia ser muito mais criativa se parasse de pensar que pintar e escrever são planetas diferentes", escreve ao Ípsilon.
Mas voltando a "Geração A" e ao Coupland nas bancas, esta geração que começa de novo, a primeira da turma, só pode concluir que o que tem em comum são as suas histórias e resquícios de fenómenos que outrora foram globais mas que agora são de macro-nichos. Mais uma vez, solitários como em "Gum Thief" (2007), "Shampoo Planet" (1992), "Eleanor Rigby" (2004) ou o muito Smiths "Coma Profundo" (no original, "Girlfriend in a Coma", 1998). "Geração X", o livro que começou esta carreira de colaborador da "Wired", de artista plástico, de orador universitário e de investigador da cultura canadiana (o seu espólio está já na posse da Universidade de British Columbia, e Coupland está agora a redigir uma série de palestras que, no final, formarão o próximo romance, "Player One: What Is to Become of Us?", e que em Novembro serão lidas em cinco sessões de uma hora na rádio canadiana), foi escrito em solidão total. E com notas, centenas de páginas de apontamentos detalhados com observações que fazia do quotidiano.
Quando chegou a "Coma Profundo", Coupland afirmou que esse seria o ultimo livro que escreveria como um jovem, ou seja, baseando-se nessas notas.
Como é que escreve agora o Douglas Coupland crescido?
Já não uso apontamentos há anos. Acho que aprendi a inventar as minhas próprias notas - o que é uma definição de ficção.
Quando escreveu "Geração X" isolou-se no deserto. Como foi a escrita de "Geração A"?
Tinha partido a perna e estava preso na cama, o que foi outro tipo de isolamento. E depois habituei-me a estar isolado e quando melhorei fui para Oahu [Havai] e continuei a estar isolado.
As coisas vão melhorar
As crianças solitárias e observadoras podem redundar em escritores que captam o espírito de um tempo com o detalhe e o humor negro que Coupland produziu ao longo de 20 anos de obras mais ou menos conseguidas. Nas melhores, eis a solidão e as estórias, o acto de as contar como terapia em sentido lato, polvilhadas com os açúcares prazenteiros dos tais fenómenos que se camuflam no seu gigantismo.
Quão importante foi para si, enquanto criança, o contar histórias
Enquanto criança? Acho que as pessoas nunca faziam isso nos anos 60. Contar histórias aos filhos parece sempre uma coisa nova que as pessoas que acreditam no "Forrest Gump" fazem pelos seus filhos. Deve deixar-se que os miúdos descubram coisas sozinhos.
O homem que está cansado de rótulos geracionais fez mais uma geração. Espanta-se com a existência de vida nestas noções, e conta-nos que não gosta dessa ideia de que os filhos dos anos 90 são uma leva de "slackers" desmotivados, desiludidos, sem heróis, retratados em filmes ("Slacker", de Richard Linklater, "Reality Bites", de Ben Stiller, "Clerks", de Kevin Smith. e até "Kids", de Larry Clark), livros e caricaturas sociais com um "link" para as drogas e a anomia ("Speaking as a child of the nineties, never thought you'd... habit", ecoam os Pearl Jam). Falar de grunge (o tal movimento musical do som de Seattle que nunca existiu e que Kurt Cobain matou numa t-shirt) ou de "slacker" a Coupland é como repetir a Tim O'Reilly e outros gurus do século XXI que hoje tudo é "2.0". Provocação:
Com tantos projectos e meios ["jPod" foi série de televisão, já escreveu para cinema, além da supracitada actividade artística e de design], é o membro mais trabalhador da geração "slacker"?
Ainda a perpetuar o mito do slacker? Todos aqueles hippies exaustos precisaram de propagar esse mito para fazer com que a sua própria geração se sentisse melhor quanto às suas derrotas e falhanços.
É aproveitar a conversa sobre a década que entra agora em modo de revivalismo pós-80 (saquem das camisas de flanela, "it's (d)evolution, baby") e sobre meios e plataformas para falar de jornais, de crise, da ideia do papel como suporte em extinção. "Acho que as revistas já bateram no fundo e só podem melhorar. Fui ao site da 'Vanity Fair' e estava óptimo", diz Coupland. "Mas ainda haverá nova ronda de extinções. De quantas 'InStyle' [revista internacional de moda focada na cultura de celebridades] precisa um planeta?", ironiza. Os telemóveis fazem de todos nós uns filhos da puta armados em importantes, como escreveu numa coluna sobre tecnologia no "Guardian" em 2008, mas um dia, completou ao "Times", "alguém fará a última chamada". "Geração A" talvez queira ser uma chamada de atenção - o mundo está a correr mesmo mal, há pessoas-pessoas mesmo ao seu lado, enquanto você está a actualizar o seu perfil no Facebook.