“A arte é tudo. Tudo o resto é nada”
Lembrou-se Eça. A despedida ao Nobel foi marcada pela emoção. A sua obra foi comparada à de Camões e Pessoa. Só faltou o Presidente.
O avião estava prestes a cair. Lá dentro, entre os passageiros, estava o escritor brasileiro Jorge Amado. No momento em que todos se agitavam com medo de morrer pediu os jornais à sua mulher. “Estamos prestes a morrer e você quer ler os jornais?”, surpreendeu-se Zélia Gattai. Jorge Amado queria morrer informado sobre o que se passava no mundo. Foi esta a história com que Pilar del Río prestou a homenagem final ao marido, no discurso que fez ontem na antecâmara do crematório, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
“E tu, Saramago, hoje ficas a saber”, continuou Pilar, agitando as mãos. A cremação do escritor foi vedada aos jornalistas e esta é a versão contada por quem esteve dentro da sala, por isso, as palavras podem não ser exactas. “O que se passa no mundo é que todos os meios de comunicação falam de ti” e dizem que morreu um homem bom e honesto, um bom escritor, um ser humano excepcional, um lutador. “E nós não temos o direito de chorar, de derramar lágrimas, porque somos os privilegiados que te conheceram. Que chorem os milhões de pessoas que não tiveram a sorte de passar contigo os momentos de vida.”
Do lado de fora, um cordão policial não deixava ninguém aproximar-se das portas de vidro fechadas. “A luta continua!”, gritavam os mais velhos entre a multidão que enchia o cemitério até à porta de entrada, alguns com os punhos cerrados. “Saramago amigo, o povo está contigo”, ouvia-se a seguir. E despontavam livros, no final de braços mais jovens. Quando começou a sair fumo da chaminé do crematório, perto da 13h30, ouviram-se muitas palmas.
Lugar na literatura mundial
Horas antes, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, em Lisboa, o professor e ensaísta Eduardo Lourenço colocou em destaque, junto ao caixão do escritor, um exemplar de O Memorial do Convento. Aconteceu num dos momentos em que a comunicação social não podia estar presente, mas a escritora Lídia Jorge assistiu. Lourenço, mais tarde, explicou que o fez porque foi a obra, “surpreendente e imprevisível”, que pôs Saramago na história da literatura mundial. Ele deu “uma dimensão mítica a Portugal que não tínhamos senão no passado”, explicou. “Camões pertence a essa constelação, mas está no passado, Fernando Pessoa está no presente mas também está no passado. Saramago alargou o nosso pequeno país à dimensão do mundo.”
Desinquietar quem ler
Já passava das 11h00, quando no Salão Nobre, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, iniciou os discursos. “As cinzas de José Saramago descansarão na cidade de Lisboa”, afirmou. Mas a sua obra é “património de toda a humanidade” e “a sua mensagem, o seu desassossego”, continuarão “a desinquietar todos aqueles que a lerem. Obrigado, Saramago”. A seu lado, estavam o primeiro-ministro José Sócrates, os ex-presidentes da República general Ramalho Eanes e Mário Soares, membros do actual Governo e muitas figuras da cultura portuguesa. A filha e os netos de Saramago encontravam-se todos juntos, ao pé de Pilar, que, durante os discursos, emocionada, olhava várias vezes, enlevada, para o marido.
O professor universitário Carlos Reis abordou o percurso literário e o legado do autor de Caim. Um dos momentos mais bonitos do discurso foi quando convocou para aquela sala as personagens criadas pelo único Prémio Nobel da Literatura português. E, citando Eça de Queirós, afirmou: “A arte é tudo, tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade do mundo.”
Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do PCP, disse que Saramago “podia ter sido só um escritor maior da língua portuguesa, mas foi mais do que isso”. Foi um homem que acreditou nos homens, mesmo quando os questionava.
Foi a vez dos discursos que mais emocionaram a sala. Para María Teresa Fernández de la Vega, vice-representante do Governo espanhol, José Saramago “fez soar as cordas da alma”. Era “uma dessas poucas pessoas que sabem recordar-nos que podemos e devemos ter grandes sonhos, tão grandes que nunca os percamos de vista”. E ele sonhou. “Sonhou com uma terra livre - livre de opressão, de miséria e de perseguição. Sonhou com um mundo em que os fortes eram mais justos e os justos eram mais fortes.” Todos nos “sentimos órfãos da sua figura tão querida e das suas palavras tão confortantes, órfãos de quem tantas vezes foi a nossa voz”. Muitos olhos, na sala, se encheram de lágrimas.
Por fim, a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, lembrou que José Saramago enfrentou dogmas. “Não tinha fé em Deus, mas certamente Deus teve fé nele.”
Lá fora, quando já havia terminado a cerimónia, todos olharam para cima e bateram palmas sem parar. Era Pilar del Río, que aparecia ao balcão, ao lado de Violante Matos, a filha de Saramago, e da violoncelista Irene Lima que interpretara Bach. Ela vestia a roupa que Pilar usou no banquete do Prémio Nobel 1998, em Estocolmo. Na barra do vestido vermelho, uma das frases de O Evangelho Segundo Jesus Cristo: “Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, Quero estar onde estiver a minha sombra, se lá é que estiverem os teus olhos.”
António Lopes, de Oeiras, que foi colega de Saramago na Escola de Serralheiro Mecânico Afonso Domingues, achou a “cerimónia muito adequada”. Gostou do que viu no ecrã gigante colocado na rua para que a população conseguisse acompanhar em directo a homenagem.
À saída, o escritor valter hugo mãe considerou que na cerimónia fez falta o Presidente da República. “Sei de tanta gente que gostava de estar aqui representada e não esteve. Cavaco Silva tinha que estar aqui. Não é possível receber o Papa daquela maneira e não se despedir de José Saramago de alguma forma. Sinto-me indignado”, acrescentou o Prémio José Saramago 2007, para quem a grande lição do Nobel “foi contra a indiferença”. Maria Gertrudes, de Alverca, conversava com quem a rodeava. “Ainda bem que o Presidente da República não está. Somos poucos, mas bons. Cavaco Silva foi coerente em não ter vindo.” A artista Io Appolloni, entre os anónimos, “lamentava profundamente” a ausência do Presidente da República. “Perdeu muitos pontos por isso. Se fosse a despedida de Camões ou de Pessoa, ele estaria, e José Saramago está à altura desses escritores. Às vezes, os governos cometem erros. Foi a única nódoa negra da cerimónia.”
Ler com Baltasar e Blimunda
Pouco depois, já no cemitério, ouviram-se gritos: “Saramago! Saramago! Saramago!” Atiraram-se flores. Cecília Sales, militante do PCP, de 68 anos, abanava os cravos que tinha na mão. Foram as histórias de Baltasar e Blimunda que a fizeram retomar os hábitos de leitura que perdera. Sobre qual deveria ser o destino das cinzas do escritor, tinha resposta pronta. “Deveriam ficar no Panteão Nacional. Ele merece-o. E agora, que morreu, pode ser que algumas vozes deixem de o criticar.”
Duas crianças, sentadas, cada uma com o seu cravo, comportavam-se como os adultos. Maria Constança, de cinco anos, e o irmão, Nuno Afonso, de seis, foram “ver um escritor amigo da avó” e explicaram que os cravos eram para atirar ao tal escritor. Nuno, com alguma ajuda, conseguiu recordar-se do nome: “Saramago”.
Centenas de pessoas, empurrando-se, tentavam aproximar-se do crematório, onde decorria a cerimónia privada. Todos queriam entregar ramos. Havia gente impaciente. “Alguém sabe onde posso deixar estas flores?”, gritava uma senhora, vestida de preto e de lenço vermelho a proteger a cabeça do sol. “Queria entregar-lhe estas flores.”
Quando os familiares e praticamente todos os que assistiram ao funeral já tinham deixado o cemitério restavam apenas cravos pisados no chão. A porta do crematório estava aberta. A mulher do lenço vermelho continuava, desesperada, a perguntar como poderia entregar todas aquelas flores.
Ao fundo, o sítio onde esteve pousado o caixão, provocava uma imensa sensação de vazio, apesar dos cravos ali pousados. Para sempre, na nossa memória, ficará a frase lembrada no final do discurso de Gabriela Canavilhas, a frase que escreveu anteontem um amigo a Pilar del Río: “Não há palavras, Saramago levou-as todas...”
com Cláudia Sobral