De um filme baseado num jogo de vídeo, há sempre que esperar o pior. Por tudo isto, convém já explicitar que "O Príncipe da Pérsia" constitui uma relativa (e agradável) surpresa: embora destinado a um público-alvo que reconhece os heróis da consola de jogos, o filme cedo mostra que pretende incorporar a memória fílmica das aventuras clássicas.
Num Império Persa, mais mítico do que histórico, sem grandes dados quanto à sua localização cronológica (o que, no contexto presente, não constitui defeito, mas feitio), assistimos ao assalto pelas tropas do rei Sharaman, confiadas aos seus três filhos, um dos quais adoptado (Dastan, encarnado com conveniente superficialidade por Jake Gyllenhaal), à cidade sagrada de Alamut. É aí onde está encerrado o segredo das areias do tempo, das origens míticas da salvação do mundo, guardadas pela princesa Tamina (assim tal e qual, como na "Flauta Mágica" de Mozart). Nada de mais previsível, a desencadear todo o tipo de peripécias, desde lutas corpo a corpo, travessias do deserto, duelos de armas brancas e traições inverosímeis, tudo empacotado em efeitos especiais toscos e primários.
Onde reside o interesse desta produção da Disney? Precisamente no seu carácter simplista de não procurar mascarar o essencial de uma fábula das "Mil e Uma Noites", endereçada a um público que já conhece Indiana Jones e que foi alimentado pelas bizarrias da "Guerra das Estrelas".Comecemos talvez por um outro princípio: existem nas piruetas do herói, saltando de cenário em cenário, ecos longínquos do grande Douglas Fairbanks dos tempos do mudo e das suas acrobacias em "O Ladrão de Bagdad" (Raoul Walsh, 1924), por exemplo. Há na engenhosa ingenuidade do enredo, e na sua instrumentalização de um imaginário delirante e plano, vestígios das aventuras orientais da Universal dos anos 40, com a heroína a lembrar os erotismos óbvios de Maria Montez - vejam com atenção o delirante "Cobra Woman" (Robert Siodmak, 1944). Logo, o que muitos críticos censuram a "O Príncipe da Pérsia", a baixa qualidade dos efeitos especiais, reverte a seu favor, inscrevendo-o numa quase linhagem de série B, embora ostentando grandes meios de produção.
Por outro lado, como já referimos, o punhal mágico e as pesquisas arqueológicas no interior do templo de Alamut não ignoram Indiana Jones, embora reformulado depois de "A Múmia", e incorporam as regras acrobáticas do "kung-fu" coreografado de um filme como "O Tigre e o Dragão"; as aventuras no deserto, o sadismo ritual, as cobras monstruosas ou a corrida das avestruzes esboçam uma piscadela de olho à ficção científica codificada, sobretudo nos três mais recentes episódios (a prequela) da saga de "A Guerra das Estrelas", tanto mais que uma das chaves narrativas do filme elabora sobre "A Máquina do Tempo" de H. G. Wells - as capacidades mágicas do punhal de areia permitem "reescrever" a acção e voltar atrás, castigando o vilão (Ben Kingsley, em piloto automático), "ressuscitando" os príncipes mortos e evitando o Apocalipse, dado fundamental para a "modernidade" da fábula.
Dito tudo isto, tratar-se-á de um grande filme? Claro que não, uma vez que as marcas do videojogo limitam o olhar e a montagem tende sempre a confundir as imagens numa vertigem desordenada. Mesmo o excesso aventuroso aparece formatado, recusando o onirismo possível. O que defendemos é que, apesar de tudo, existe um prazer de efabular, uma capacidade para aceitar o desconchavo da aventura pela aventura que permitem consumir o produto com segurança. É um caldeirão de referências múltiplas, um divertimento descomplexado e assumido, possuindo a vantagem (enorme) de não mistificar o essencial: não se levando a sério, repõe as regras "ecológicas" do equilíbrio universal e encaixa a acção na tradição milenar do conto mágico, como se se procurasse obrigar o espectador moderno e desinformado a procurar as raízes do seu deleite numa intensa demanda do mito e não na violência desconexa do dedo na tecla da consola.