Convirá, para início de conversa, afastar aquela que é, paradoxalmente, a questão (até um pouco mórbida) que está no centro de "Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo": a de que o filme apenas valeria por ser "a última performance de Heath Ledger" (o actor australiano morreu durante a rodagem, encetada logo após o final das filmagens de "O Cavaleiro das Trevas"), quando se trata muito mais de "um regresso à boa forma de Terry Gilliam" que serve também como memorial a Ledger. Que o mesmo é dizer que o antigo animador dos Monty Python, autor de "O Rei Pescador" (1991) e "12 Macacos" (1995) mas também de "Delírio em Las Vegas" (1998) e "O Mundo ao Contrário" (2005), assina com uma obra que teve de "salvar" após a morte inesperada da sua vedeta o seu melhor filme em muitos anos.
Que Gilliam é um rapaz atreito a desgraças sabe-se desde a controvérsia que rodeou "Brazil - O Outro Lado do Sonho" em 1985 (a saber, a Universal retalhou-lhe o filme e ele ergueu-se em armas contra o estúdio) - o desastre comercial da "Fantástica Aventura do Barão" (1988), o cancelamento de "The Man Who Killed Don Quijote" ao primeiro dia de rodagem, as guerras com a Miramax por causa de "Os Irmãos Grimm" (2005), as reacções de perplexidade perante o inexplicável "O Mundo ao Contrário". Tudo casos mais ou menos célebres que ressoam de certa maneira na história que escreveu com o velho cúmplice Charles McKeown para "Parnassus": a história de um sábio imortal (Christopher Plummer, cheio de classe) que fez um pacto com o Diabo e que erra com o seu "Imaginarium" de outro tempo - um espelho mágico que é na realidade um portal para dentro da imaginação de quem o atravessa - por uma Londres contemporânea, sem objectivo, até o Diabo (um irresistível Tom Waits) vir cobrar.
Um sábio que acredita que, enquanto alguém, algures no mundo, estiver a contar uma história, acreditar na ficção, o universo continuará de pé. Alguém que, como o próprio Gilliam, apenas se sente ele próprio no espaço da fantasia onde a realidade pode ser transfigurada e, de certo modo, revelada. Do outro lado do espelho, Heath Ledger (que morreu antes de rodar as sequências de efeitos visuais) ganha os rostos de Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell, numa engenhosa solução de recurso que vai directa ao âmago da personagem (um vigarista de muitas caras) e, de caminho, ao centro do próprio filme.
E é aí que "Parnassus" se ganha. O problema maior do cinema de Gilliam sempre foi o descontrolo, o excesso, o delírio, o grotesco que, deixados à solta, desequilibravam os filmes muito para lá do que as suas histórias sustentavam. Ora, aqui esse delírio surge enquadrado por uma narrativa surpreendentemente mais estruturada do que lhe é habitual, que assume os contornos de um conto de fadas com moral e tudo. Isso não implica que o classicismo da estrutura resolva de modo certinho todas as pontas soltas (não resolve), mas Gilliam acertou no tom exacto que poderia salvar "Parnassus" da morbidez terminal. Esse tom é, ao mesmo tempo, maravilhoso e terrível, entusiasmante e assustador, mistura de pantomima vitoriana, "commedia dell''arte" e paisagem digital cor-de-rebuçado, e sem nunca tombar no grotesco gratuito que ameaçou afundar tantos filmes anteriores (e com um peculiar piscar de olhos aos Python no fantástico interlúdio do coro dos polícias). E, no processo, confirma que, ironicamente, é encostado à parede que assina os seus melhores filmes - em nenhum momento sentimos que o desdobramento de personalidades de Ledger por três outros actores foi uma invenção de última hora para salvar o filme, tal o modo como parece resumir a própria essência do filme e, de caminho, do cinema do americano.
"Parnassus" é, também e sobretudo, um elogio do artesanato face à esterilidade digital dos nossos dias - há mais invenção e mais alma num só fotograma (mesmo que mal acabado) do filme do que em toda a perfeição digital da "Alice" de Burton - e é uma surpresa tanto mais inesperada quanto havia razões para temermos um descalabro.
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