A polémica está instalada, por estes dias, na Polónia, mas promete ter réplicas a nível mundial equivalentes à repercussão mediática do nome que está no seu epicentro: terá Ryszard Kapuscinski (1932-2007), o jornalista e escritor polaco que chegou a ser considerado "o maior repórter do mundo" e foi também anunciado como candidato ao Nobel, ficcionado as suas reportagens sobre as inúmeras figuras e eventos históricos que reportou ao longo da sua carreira?
A reposta é "sim", a crer na biografia que lhe foi dedicada por um seu grande companheiro e amigo, o jornalista também polaco Artur Domoslawski, e que acaba de ser editada na Polónia. Com o título Kapuscinski Non Fiction, o livro deste jornalista do respeitado diário polaco Gazeta Wyborcza, após um demorado trabalho de investigação, sustenta que o autor de A Guerra do Futebol forçava e ficcionava muitas das suas reportagens para que elas ganhassem maior dramatismo e impacte mediático. Citado pela AFP, Domoslawski afirma que Kapuscinski "criou criteriosamente o seu próprio estatuto de lenda", ao mesmo tempo que "estendeu as fronteiras da reportagem para o reino da literatura". Esta veneração pela figura e pela obra do amigo não o impediu, contudo, de seguir os preceitos do melhor jornalismo para inquirir a verdade por trás das famosas narrativas de Kapuscinski.
Domoslawski diz que foi levado a desconfiar das histórias do famoso repórter quando percebeu que ele se refugiava em respostas evasivas sempre que instado a esclarecer as circunstâncias em que tinha realizado determinados trabalhos. É o caso, por exemplo, dos seus badalados encontros com figuras históricas como Che Guevara ou Patrice Lumumba.
"Tentei responder a uma série de perguntas-chave para o entender", justifica o autor da biografia em entrevista ao jornal El País, onde se defende das acusações que ela originou na Polónia, mesmo antes de ter chegado às livrarias, no início de Março. A viúva de Ryszard Kapuscinski, Alicjia, tentou mesmo que o Tribunal de Varsóvia impedisse a distribuição do livro, e o antigo ministro polaco dos Negócios Estrangeiros, Vladislav Bartoshevski, comparou a biografia a um "guia de bordéis", ainda segundo a AFP.
Se o mal-estar de Alicjia Kapuscinski é compreensível, já a reacção do político polaco é sintoma de uma irritação mais generalizada neste país por estar a ser posto em causa o nome de alguém que é visto como um "herói nacional". De facto, a história pessoal de Kapuscinski acompanha, de certo modo, a própria história da Polónia durante grande parte do século XX.
Nascido na cidade de Pinsk (actualmente na Bielorrússia), em 1932, Ryszard Kapuscinski licenciou-se em História e iniciou a sua carreira de jornalista numa publicação juvenil. No final dos anos 50, ingressou na agência noticiosa polaca PAP (Polska Agencjia Prasowa), tornando-se no correspondente internacional oficial, e exclusivo, durante várias décadas. Nessa qualidade, reportou mais de uma vintena de revoluções e golpes de Estado e acompanhou uma dúzia de guerras na África, Ásia e América Latina.
Testemunha única
Dessas experiências profissionais nasceram, para além dos relatos jornalísticos, alguns livros que tornariam Kapuscinski num dos mais conceituados repórteres e escritores em todo o mundo, distinguido com vários prémios, entre os quais o Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades, em 2003.
Desses livros, avultam Ébano. Febre Africana (edição Campo das Letras, 2001), por onde passa a figura de Patrice Lumumba (1925-1961), o líder africano que foi o herói da libertação do Congo do colonialismo belga, O Imperador (edição Campo das Letras, 2004), sobre a queda do ditador da Etiópia Hailé Seilassié, A Guerra do Futebol, sobre o conflito que em 1969 opôs as Honduras e El Salvador, e O Império (Campo das Letras, 2005), que reúne reportagens e reflexões sobre a sua viagem à Rússia de 1989-91, quando o império soviético estava já em declínio e Kapuscinski tinha já trocado a crença nos valores do comunismo pela defesa do Solidariedade de Lech Walesa.
No livro Kapuscinski Non Fiction, Artur Domoslawski desvenda que muitos desses relatos e encontros com figuras da História foram ficcionados ou manipulados, como terá acontecido com o de Patrice Lumumba, já que, assegura o autor, a primeira vez que Kapuscinski viajou para África já o líder congolês tinha sido assassinado. O jornalista da Gazeta Wyborcza diz também que entre as centenas de pessoas que inquiriu em todo o mundo para traçar o perfil de Kapuscinski está uma jornalista etíope que considera a narrativa O Imperador (que chegou a dar origem a uma produção teatral em Londres) mais devedora do imaginário das Mil e Uma Noites do que da real biografia do ditador Hailé Seilassié.
Outra situação contestada é a do encontro do jornalista polaco com o mítico Che Guevara, que surge referido nas capas de edições inglesas dos seus livros, mas que nunca terá verdadeiramente acontecido. Quando confrontado por um biógrafo americano do líder guerrilheiro argentino, Kapuscinski terá admitido que essa referência se devera a "um erro" dos seus editores britânicos. Mas nunca a corrigiu, deixando assim que ela adornasse a sua biografia e a sua lenda de repórter sem fronteiras, nota Domoslawski. Este investigou também as situações em que Kapuscinski dizia ter escapado a pelotões de fuzilamento, e das quais só conseguiu confirmar uma: em todas as outras, o repórter "era a única testemunha do que supostamente lhe tinha acontecido", diz.
"Eu tentei resolver uma série de perguntas-chave para entender Kapuscinski. Por exemplo: como é que ele fez a sua carreira de grande repórter dentro de um regime não-democrático", justifica-se ainda Domoslawski na citada entrevista ao El País, referindo-se à circunstância de durante grande parte da sua vida Kapuscinski ter estado nas boas graças do regime comunista polaco e de ter acreditado na bondade do sistema soviético.
Por outro lado, Domoslawski recusa a ideia de que está a "trair" a sua amizade por Kapuscinski. "Não aceito essa acusação. Quem ler o meu livro, dar-se-á conta de que a biografia foi escrita com uma enorme simpatia por Kapuscinski. Ele fascina-me", acrescenta o biógrafo, voltando a enaltecer a sua escrita e a realçar que ele não só "ajudou a entender universalmente os mecanismos do poder", como deu voz às populações excluídas principalmente nos países do Terceiro Mundo, além de que "elevou a reportagem ao nível da grande literatura".
"Se ele tivesse escrito uma biografia de alguém, tê-lo-ia feito de uma maneira similar à minha. Mas não ficaria feliz por ler a sua", admite Domoslawski.