Se há um cineasta europeu contemporâneo que temos tido a oportunidade (rara hoje em dia) de acompanhar continuamente, esse cineasta é o austríaco Michael Haneke - desde as "Brincadeiras Perigosas" originais (1997) que o revelaram internacionalmente, toda a sua obra chegou às nossas salas, o que é tanto mais peculiar quanto se trata de um dos autores menos unânimes e mais divisivos da actualidade. "O Laço Branco", Palma de Ouro em Cannes 2009, não é excepção à regra - Haneke continua a perseguir os mesmos temas de sempre com os mesmos métodos clínicos e austeros de sempre, embora aqui com uma diferença de base por comparação com os seus filmes anteriores. Trata-se de um filme de época, ambientado na Alemanha rural nos meses anteriores ao eclodir da I Guerra, e essa transposição para o passado parece permitir ao espectador um outro distanciamento. E tal como em "Nada a Esconder" (2004), há um semblante de género: o fio condutor da história é uma espécie de mistério policial, à volta de uma série de incidentes estranhos que perturbam uma pequena aldeia alemã.
Ou seja: e se "O Laço Branco", que começou vida como uma ideia para uma mini-série televisiva e acabou por ser feito para cinema, confirmasse definitivamente Haneke como um cineasta rigoroso e inteligente, cujos evidentes talentos de contador e organizador tivessem sido obscurecidos pelas estratégias narrativas provocadoras dos seus filmes? Sobretudo num filme onde a destilação precisa e segura, quase virtuosa, das suas "marcas registadas" dentro de um universo mais acessível impõe aqui um outro respeito, força uma outra atenção?
É, no entanto, não contar com a típica perversidade Hanekiana. Apesar das inclemências das duas "Brincadeiras Perigosas" (1997 e 2007) ou da "Pianista" (2001), nunca o seu cinema foi tão teatro da crueldade como em "O Laço Branco" - e a expressão "teatro" é perfeitamente adequada a um filme que denuncia o teatro social de uma comunidade onde os códigos feudais patriarcais ainda resistem e onde a liberdade pessoal de nada conta face à lei do pai ou de Deus (no caso, vai dar ao mesmo, porque aqui o pai é Deus, como explica a personagem do pastor).
Toda a gente neste filme representa um papel dentro de uma estrutura rígida onde até os pecados dos pais parecem estar predestinados - e isso leva-nos ao tema da culpa, que Haneke explora elegantemente através da sua elisão. Numa comunidade temente a Deus e às leis divinas, a culpa é impensável porque isso implicaria que ninguém é quem diz ser e que todos têm algo a esconder - e, contudo, a própria paz de Eichwald depende de ninguém ter nada a esconder. Tal como as video-cassetes de "Nada a Esconder" serviam como impulso revelador, os misteriosos incidentes de Eichwald trazem à superfície uma verdade que todos reprimem ou escondem mas que ninguém confessa ou assume.
É da culpa do nazismo que persegue a memória alemã e austríaca que Haneke fala? Provavelmente - mas isso é fixar uma interpretação que o realizador, que gosta de lançar enigmas mas não de desvendar as respostas, dificilmente aceitaria como única ou exclusiva. O que é certo é que é de pais e filhos que ele fala, do modo como os pecados ou as graças dos pais marcam os homens e mulheres que os seus filhos e filhas virão a ser. E pelo meio das inferências, elipses, sugestões e possibilidades que o filme lança, a única certeza é que o "ontem" de Haneke tem muito a ver com o "hoje" em que vivemos, é um espelho distorcido que o austríaco levanta com o seu ar rígido e professoral. À medida que os mistérios de Eichwald se vão adensando, que a crueldade dos adultos e das crianças se vai revelando, o austríaco sublinha por empatia as semelhanças desta comunidadezinha com o mundo em que vivemos, o modo como a história e o contexto tecem laços e teias de causalidade no que pode não passar de coincidência. Fá-lo num rigoroso preto e branco de um ascetismo quase calvinista, subvertendo continuamente os códigos e as regras do género que respeita à superfície.
"O Laço Branco" é um filme que, tal como as suas personagens, não é bem aquilo que parece ser. Mas isso, vindo de Michael Haneke, já não devia surpreender ninguém - tal como não surpreenderá ninguém que este seja, muito provavelmente, o seu melhor filme de sempre.