Os alienígenas são nossos amigos

De vez em quando, Hollywood leva um chuto que - como se costuma dizer - até vai de lado: gasta fortunas em filmes baseados em linhas de brinquedos e que correspondem à ideia de um departamento de contabilidade e "marketing" (mas não de um espectador...) do que é um "blockbuster" (sim, estamos a falar de vocês, "Transformers" e "G. I. Joe"), e deixa-se comer por um filmezinho feito à margem do radar por gente de quem nunca se ouviu falar, que consegue ter mais cabeça, mais emoção e mais acção em dez minutos do que esses pretensos "blockbusters" em duas horas ou mais. "Distrito 9" veio comer as papas na cabeça a todas as apostas de Verão dos grandes estúdios e o mais espantoso é que esta produção independente rodada por tuta e meia na África do Sul seja também um extraordinário filme sobre o mundo em que vivemos - como aliás é apanágio dos grandes filmes de género e de série B, em cuja linhagem "Distrito 9" se insere honrosamente.


O cenário é uma favela de Joanesburgo que vai começar a ser desmantelada e cujos habitantes vão ser transportados para o Distrito 10, que tem o aspecto de um campo de refugiados. Mas faz sentido que assim seja, porque quem mora neste bairro da lata são de facto refugiados - de outro planeta. Extra-terrestres cuja nave espacial, avariada e aparentemente impossível de ser consertada com a tecnologia humana, veio "dar à costa" sobre a metrópole sul-africana há vinte anos, e que acabaram por nunca ser verdadeiramente assimilados pela sociedade, que os explora, humilha e despreza como "gafanhotos". A metáfora evidente é o "apartheid", mas pode ser esticada para "o outro", "o diferente", "o que não é como nós", "o imigrante" - o que torna o primeiro filme de Neill Blomkamp, publicitário sul-africano de 29 anos, num retrato distorcido de um mundo onde a globalização está a andar depressa demais para muito boa gente (e o seu sucesso nos EUA, país onde neste momento a questão do outro e da diferença é central ao próprio debate sociopolítico, é mais significativo do que parece).

Wikus van de Merwe, um burocratazinho cobarde encarregue do processo de transferência dos extra-terrestres para o novo campo de refugiados, entra acidentalmente em contacto com uma substância orgânica que começa a alterar o seu ADN e o torna num mutante preso no limbo entre dois mundos e extremamente valioso para a multinacional onde trabalha, forçando-o a unir esforços com um dos extra-terrestres. Apesar de estruturado como um falso documentário (com depoimentos de experts e tudo) que retraça a história da difícil coabitação humanos-E.T.s e procura explicar os misteriosos acontecimentos iniciados com o processo de transferência para o Distrito 10, "Distrito 9" é um mutante inteiramente novo. Tal como as grandes séries B dos anos 1950 e 1960 transmutavam os medos do mundo real em ficções de medo, "Distrito 9" compacta um enorme "mash-up" de sátira política, comentário social, teorias da conspiração, estéticas pós-modernas e figuras obrigatórias do cinema de género num filme que se ancora numa vertente profundamente humana.

A odisseia de Wikus, o burocrata que se procura agarrar à sua humanidade no exacto momento em que todos os outros lha recusam, tem algo da dimensão trágica da "Mosca" de Cronenberg (veja-se o extraordinário plano final) cruzada com o comentário político de um Ken Loach, mas o todo disfarçado por entre um filme de acção superiormente gerido, à qual a opção pela câmara "vérité" (substituindo a montagem ultra-rápida) vem dar uma adrenalina e uma urgência ausentes da maior parte da concorrência de grande orçamento.

"Distrito 9" apenas vem confirmar como o cinema de género é muito menos "menor" do que a maior parte das pessoas acham. Que o filme tenha sido "apadrinhado" por Peter Jackson, cineasta que ele próprio transcendeu as suas origens de género sem as trair (e que permitiu a Blomkamp fazer o seu filme em absoluta liberdade e fora do radar dos estúdios), é apenas mais uma prova de que não devemos olhar de esguelha para os alienígenas - temos muito a aprender com eles. Mesmo que Hollywood não aprenda a lição.

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