Como um western trágico

Numa entrevista à revista "Filmmaker", Jeff Nichols responde assim a uma pergunta do género "se pudesse escolher, em que época, em que lugar, filmaria?": a meio dos anos 60, no sul americano, e a preto-e-branco, diz. Na sua nota de intenções, no site de "Histórias de Caçadeira", explicita ainda mais ao que vem com esta primeira longa (2007): estar contra a corrente do cinema contemporâneo e suas vestimentas, por isso não usou o vídeo, por isso o filme tem diálogos e narrativa, por isso a câmara não se mexe, ou só se mexe quando tem de... (E há outra coisa: Nichols ficou marcado por "Lawrence da Arábia", o que dito por um cineasta de 31 anos é algo que pode soar anacrónico).


Não é a primeira vez que, no contacto que vamos tendo com o novo "indie" encontramos a disposição para um "back to basics" - que é também o regresso ao tempo em que o cinema americano era adulto, e isso foi há muito tempo, algures entre os anos 60 e 70, lá está... Parece ser esta uma história a contar sobre o novo "indie". Lembramo-nos de "Ballast" (2008), de Lance Hammer, de "Prince of Broadway" (2008), de Sean Baker, de "Wendy and Lucy" (2008), de Kelly Reichardt - filmes que o IndieLisboa exibiu - ou de um maravilhoso "Go Get some Rosemary" (2009), de Ben e Joshua Safdie (Quinzena dos Realizadores de Cannes), e vemos cineastas ao encontro de uma respiração entretanto perdida. E ao encontro de personagens e paisagens que nunca mais foram filmadas, ou nunca mais foram filmadas assim... de John Cassavetes a Barbara Loden (modelos visíveis nos filmes citados), ou, para regressarmos a "Histórias de Caçadeira", nunca mais assim desde Martin Ritt, Stuart Rosenberg ou Arthur Penn, a geração que, nos anos 60, passou do pequeno para o grande ecrã fazendo uma síntese com os restos do cinema clássico e com o pragmatismo do realismo televisivo.

É por este território que anda "Histórias de Caçadeira", história de vingança entre duas facções de uma família do sul americano, entre dois grupos de filhos, aqueles que um pai alcoólico abandonou e aqueles que esse pai, depois de convertido à religião, criou com nova mulher. Passa-se no dormente Arkansas, estado natal de Nichols - estas personagens e esta paisagem adormecida são as da infância do realizador. E é uma história contada do lado dos "abandonados", chamados Son, Boy e Kid - como se os pais se tivessem esquecido de lhes atribuir identidade... Podia ser um "western" que vai preparando o duelo final, aquilo pelo qual as personagens e os espectadores anseiam com euforia. Mas Nichols trabalha para frustrar euforias - e isso a uma segunda visão do filme corre o risco de se evidenciar como programa, como se ouvíssemos em surdina um "tema", um discurso pós-11/09 contra a vacuidade das vinganças (e até o facto de o título caminhar para a abstracção, "Shotgun Stories", "Histórias de Caçadeira", participa de certa tendência para a aridez).

Nicholas, dizíamos, trabalha meticulosamente essa frustração desde logo quando constrói com sentido de irrisão a personagem - Shampoo - que é a figura do agoiro: cheio de pensos, ele próprio desastre ambulante, à procura de lugar para estacionar o carro no terrenos de Son, Boy e Kid, que é como quem diz: à procura de lugar na narrativa. Ou quando nos faz interessar pelo irmão com medo. E quando - é o mais distintivo em "Histórias de Caçadeira" - usa como armas o laconismo, o silêncio nos planos e exercita uma respiração que contraria o espectáculo da tragédia anunciada, que contraria uma dimensão "bíblica" (a sequência em que a polícia chega e impede o que podia ser um ajuste de contas; as elipses com o episódio da serpente; a forma como a morte está sempre fora de campo). Não é por acaso que numa entrevista tenha assumido que o seu filme está menos do lado da poesia de Terrence Malick e mais do lado de "Hud", de Martin Ritt, ou de "Cool Hand Luke", de Stuart Rosenberg (isto para além das dívidas assumidas para com o universo de Cormac McCarthy ou Raymond Carver).

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