Este Cristo é ou não é de Miguel Ângelo?

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Para o Governo italiano, apoiado na avaliação de especialistas, este é o Cristo reencontrado do grande mestre do Renascimento; para outros investigadores, a atribuição da autoria a Miguel Ângelo é abusiva DR

O Governo de Sílvio Berlusconi acredita que sim, e de tal modo que, no final do ano passado, decidiu mesmo comprá-la a um antiquário de Florença, por 3,25 milhões de euros. Sandro Bondi, ministro dos Bens Culturais, justificou a aquisição dizendo tratar-se de "um símbolo de valor universal", que se tornará também "um embaixador da cultura italiana no mundo".

Antes da compra, o Governo pediu a avaliação da peça a vários especialistas em História de Arte e da época do Renascimento, que viriam a confirmar a verosimilhança da atribuição da autoria ao escultor do David. E uma das primeiras figuras a poder admirar a obra em exposição foi mesmo o Papa Bento XVI, alguns dias antes do Natal, no Vaticano.

A peça em causa, representando Cristo no momento do último suspiro, esculpido em madeira de tília policroma, mas já sem a cruz de suporte, e com 41 centímetros de altura, surpreende pela sua perfeição e delicadeza, e também pelo realismo da anatomia humana, como ela começou a ser representada no Renascimento.

"Eu já vi centenas de crucifixos, mas este denota uma manufactura bem superior a todos os outros", disse à imprensa internacional Giancarlo Gentilini, historiador de Florença considerado um dos grandes especialistas italianos em arte do Renascimento, depois de ter realizado o estudo aprofundado da peça.

Com Gentilini fizeram coro vários outros especialistas de renome, como Umberto Baldini, Luciano Bellosi, Massimo Ferretti, Cristina Acidini Luchinat e António Paolucci, este na qualidade de director dos Museus do Vaticano, que defenderam a justeza da atribuição da autoria a Miguel Ângelo (1475-1564). Tratar-se-ia, então, de uma obra da juventude do artista, provavelmente esculpida entre 1492 e 1495.

Confortado com esta unanimidade - e também com a indesmentível beleza da obra -, o Cristo crucificado começou uma digressão por Itália, tendo já passado pela Câmara dos Deputados, em Roma (onde atraiu mais de 30 mil visitantes), por Trapani e Palermo, na Sicília, por Milão e Nápoles, até ao regresso a Florença, onde encontrará poiso definitivo no Museu de Bargello.

Contestação partiu de fora

Mas, subitamente, esta história de sucesso e de veneração transforma-se em polémica artística e política. E é curioso notar que o ruído que passou a ensombrar a digressão deste Cristo partiu de fora de Itália. Num artigo publicado em meados de Abril, o “New York Times” (NYT) dá voz a outros investigadores italianos, também especialistas em arte do Renascimento, que contestam abertamente a atribuição da autoria da pequena escultura a Miguel Ângelo.

Tomaso Montanari, um historiador de Nápoles, e Maurizia Migliorini, professora da Universidade de Génova, formam um novo coro, mas desta vez de oposição. E a polémica foi entretanto reforçada por uma reportagem feita pela BBC, há duas semanas, aquando da exposição do Cristo numa catedral de Nápoles.

A ausência de assinatura e de qualquer documento ou testemunho que sustente aquela atribuição é o principal argumento dos contestatários. E mais: eles vêem nesse processo "uma operação de propaganda" do Governo de Berlusconi e, em especial, do ministro dos Bens Culturais, "para tentar mostrar que este ministério existe", diz Maurizia Migliorini, uma das subscritoras de um comunicado público a denunciar o caso, citada pelo BBC. Os autores do documento falam mesmo de "manipulação política de um tema religioso" com o objectivo de favorecer a imagem do Governo junto da Igreja e do eleitorado católico.

Francesco Caglioti, professor na Universidade de Nápoles e especialista em escultura, diz, por outro lado, que é possível identificar "uma dúzia de artesãos do tempo do Renascimento capazes de fazer um Cristo como este", acrescentando mesmo que ele não valerá mais do que 100 mil euros. E todos contestam que o Ministério da Cultura tenha despendido três milhões de euros numa altura de crise e de redução no orçamento da Cultura, o que tem levado a que o património cultural do país esteja a ser descurado.

De 18 para três milhões

A avaliação da peça é, aliás, um dos pontos da polémica. Se fosse possível confirmar, objectivamente, a autoria da escultura - dizem estes especialistas -, ela valeria dez vezes mais do que os três milhões de euros pagos pelo Governo ao antiquário Giancarlo Gallino, que terá começado por pedir 18 milhões pela peça. O artigo do NYT refere mesmo que o negociante de arte tentara vender a escultura há já uns anos, quando o expôs na Casa Buonarroti (onde viveu e trabalhou Miguel Ângelo), em Florença, mas que, na altura, o director deste museu, Luciano Berti, apesar de ter considerado a peça "muito bela", pôs de parte que ela pudesse ser atribuída ao mestre renascentista, autor dos frescos da Capela Sistina ou da Pietà da Igreja de São Pedro, no Vaticano.

Para responder às críticas e refutar os argumentos apresentados, Cristina Acidini Luchinat garantiu à BBC que continua a defender a atribuição a Miguel Ângelo: "Estou tão segura disso quanto posso estar". Outro dos defensores desta tese nota que é muito natural que o jovem escultor, "para sobreviver", tivesse de fazer pequenos trabalhos como este. "Não podemos associar o nome de Miguel Ângelo apenas às obras-primas."

Analisando esta polémica à distância, o historiador de arte Vítor Serrão - que dela só conhece o que viu e leu na Internet - diz que a reputação científica de figuras como Giancarlo Gentilini e Cristina Acidini Luchinat o levam a aceitar como "credível" a atribuição da autoria do Cristo a Miguel Ângelo. Para além de que considera também a imagem "uma obra-prima" - "tem uma beleza, um rigor anatómico e uma expressão dramática" que rimam bem com a arte daquele mestre. "Olhando a fotografia, não estou a ver que isto possa ter sido feito por alguém que não tivesse a genialidade e o sentido humanista de Miguel Ângelo", acrescenta o professor do Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lamentando que não haja polémicas sobre autorias artísticas em Portugal.

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