O homem que tinha em casa as dez primeiras edições da Peregrinação

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A Livraria Manuel Ferreira inicia esta noite, na Junta de Freguesia do Bonfim, no Porto, o leilão da biblioteca de Laureano Barros (1921-2008), um professor de Matemática e fi gura da oposição ao regime salazarista que, ao longo de décadas, reuniu na sua casa de Ponte da Barca aquela que é, muito provavelmente, a mais notável colecção privada de literatura portuguesa constituída na segunda metade do século XX.

Nascido em Matosinhos em 1921, Laureano Barros não foi, nem nunca quis ser, uma fi gura pública, mas a sua biblioteca era bem conhecida dos muitos investigadores que a frequentavam, e todos os bibliófilos lhe conheciam o nome, pronunciado com reverência pelos alfarrabistas. Não era caso para menos. Os mais de seis mil lotes que agora vão ser leiloados incluem, por exemplo, a primeira edição da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, de 1614, um objecto mítico da bibliofilia internacional. O coleccionador devia ter, aliás, uma admiração particular pelo aventureiro e prosador quinhentista, já que se deu ao trabalho - e à decerto não pequena despesa - de encontrar e adquirir todas as primeiras dez edições da "Peregrinação".

Para se ficar com uma ideia do gigantismo desta biblioteca, basta verificar que a sessão inaugural do leilão, amanhã à noite, irá terminar com uma série de lotes compostos por livros de Sophia de Mello Breyner Andresen, tendo a ordem de licitação sido organizada por ordem alfabética dos apelidos dos autores, ou seja, não se conseguirá chegar, sequer, ao final da letra "A". Seguem-se mais duas sessões, na sexta-feira e no sábado, e o leilão será depois interrompido até à quinta-feira seguinte, prolongandose então novamente até sábado.

Os potenciais compradores vão dispor de um cuidado e volumoso catálogo em seis volumes - ele próprio um utilíssimo instrumento bibliográfi co - e poderão ainda apreciar todas as peças na sede da Junta de Freguesia do Bonfi m, onde estarão expostas já a partir de hoje à tarde. Difícil é prever o valor que uma biblioteca como esta poderá alcançar, mas, tendo em conta os montantes atingidos recentemente por colecções muito menos importantes, não será grande surpresa se o balanço final do leilão puder vir a rondar o meio milhão de euros.

Além de coleccionador de livros raros, Laureano Barros foi um genuíno leitor. Amigo de muitos escritores, como Eugénio de Andrade ou Luiz Pacheco, a sua biblioteca inclui numerosos manuscritos e dactiloscritos que lhe foram sendo oferecidos por estes e outros autores. "Ao Laureano, com uma amizade que chega ao ponto de lhe oferecer isto", escreve Eugénio num raríssimo exemplar do seu primeiro livro, "Narciso", que publicou aos 16 anos, ainda com o seu verdadeiro nome de José Fontinhas, e que depressa veio a rejeitar. Só os livros e documentos do autor de "As Mãos e os Frutos" forneceram material para 127 lotes, que incluem, por exemplo, uma versão manuscrita do que viria ser a primeira antologia de Eugénio, publicada em 1961 na Delfos com prefácio de Eduardo Lourenço. Ou o folheto "Resposta a Mário Cesariny" (1951), no qual o poeta se defende de uma acusação de plágio.

Cancioneiros medievais

O facto de Laureano Barros não se ter regido apenas por critérios de coleccionismo deu à sua biblioteca uma abrangência pouco vulgar. Quem colecciona primeiras edições de Fernão Mendes Pinto, de António Vieira ou de Luís António Verney não costuma ter também o mítico "O Amor em Visita" de Herberto Helder ou os primeiros livros de João Miguel Fernandes Jorge. Laureano Barros tinha tudo isto e ainda arranjou tempo e dinheiro para compor uma boa biblioteca de historiografia portuguesa, para lá de livros dedicados a vários outros temas que o interessavam, como, por exemplo, a botânica. Um dos núcleos mais importantes da colecção é um exaustivo conjunto de edições portuguesas e estrangeiras dos cancioneiros medievais. Outro é o que se compõe das principais revistas literárias portuguesas, desde as oitocentistas, como "Ave Azul", passando pelas mais importantes publicações do primeiro modernismo - "Orpheu, Centauro, Exílio, Portugal Futurista, Byzancio ou Athena" -, até às que saíram já na segunda metade do século XX.

De autores anteriores ao século XIX, algumas das peças mais valiosas são as primeiras edições dos poetas quinhentistas Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz, uma segunda edição das poesias de Sá de Miranda, a edição original dos "Apólogos Dialogais" de Francisco Manuel de Melo e a segunda da sua "Carta de Guia de Casados", ou ainda as primeiras edições de diversas obras do pedagogo iluminista Luís António Verney, incluindo o "Verdadeiro Método de Estudar".

Laureano Barros coleccionou sobretudo literatura portuguesa, mas a sua biblioteca inclui também autores brasileiros - Jorge Amado está presente com mais de uma dúzia de primeiras edições - e algumas obras em línguas estrangeiras, entre as quais se destaca um raríssimo exemplar da primeira edição em volume de "Madame Bovary", de Flaubert. Outra peça curiosa é um exemplar setecentista, em latim, do "Index" de livros proibidos pelo Vaticano A partir do início do século XIX, e no que respeita à poesia e ficção portuguesas, o mais simples seria assinalar o que falta, e não falta quase nada de signifi cativo até ao fi nal da década de 1950. Atendendo só aos autores mais relevantes, pode começar-se por Garrett, que abrange nada menos do que 67 lotes, incluindo as primeiras edições dos poemas "Camões" ou "D. Branca", que introduziram o romantismo em Portugal, ou as de "Folhas Caídas" e do drama "O Alfageme de Santarém", a par de muitas outras obras menos conhecidas.

O cenário é o mesmo quando passamos aos principais poetas portugueses do século XIX, todos eles representados com o essencial das respectivas bibliografi as nas edições originais, incluindo a raríssima primeira edição dos Sonetos de Antero de Quental, as duas primeiras edições de "Claridades do Sul", de Gomes Leal, o invulgar "Mysticae Nuptiae", que Guerra Junqueiro publicou aos 16 anos, ou ainda, para não alongar os exemplos, as primeiras edições de "O Livro de Cesário Verde" e do "Só", de António Nobre. No caso da obraprima de Nobre, Laureano Barros deu-se mesmo ao luxo de reunir as oito primeiras edições. Na ficção oitocentista, as obras mais valiosas encontram-se entre os 89 lotes de Camilo e os 60 de Eça de Queirós, recheados de primeiras edições, incluindo a de "Os Maias". Mas podiam acrescentar-se muitos outros autores, entre os quais Júlio Dinis, de quem será leiloado, além dos livros de ficção e poesia, um raríssimo opúsculo intitulado "Da Importância dos Estudos Meteorológicos para a Medicina", de que apenas se publicaram 100 exemplares.

Outras raridades

Saltando para Fernando Pessoa e para a geração de "Orpheu", a coisa volta a poder resumir-se em três palavras: não falta nada. Nem sequer a segunda edição de "Mensagem", menos valiosa do que a primeira (que, claro, Laureano Barros também tinha), mas provavelmente mais rara. Só de Pessoa são 159 lotes, que incluem todas as edições que o poeta publicou em vida, dos volumes de poesia inglesa ao texto "O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal". De Almada Negreiros algumas das peças mais raras são as primeiras edições da "Cena do Ódio" e do "Manifesto Anti-Dantas". Bastante difíceis de encontrar são também as edições originais de "Confissão de Lúcio", "Céu em Fogo e Dispersão", de Sá-Carneiro. Guisado não é um autor da mesma importância dos anteriores, mas, por isso mesmo, o facto de Laureano Barros ter conseguido reunir todos os nove livros que o poeta publicou mostra bem até que ponto era um coleccionador minucioso.

Na impossibilidade de se resumir um catálogo que, no total dos seus seis volumes, terá algumas três mil páginas, faz-se apenas referência aos cerca de 100 lotes de Aquilino Ribeiro, aos 77 de Agustina Bessa- Luís, aos 65 de Torga, ou aos 41 de António Botto, entre muitos outros autores de quem este bibliófilo reuniu a obra quase sempre completa nas edições originais. Na primeira metade do século XX português, pode-se afirmar sem grande risco que a biblioteca de Laureano Barros tem todas as obras de inquestionável valor literário, mas também as que só valem pela sua raridade (e algumas valem bastante), como os primeiros livros de José Gomes Ferreira, ou os que Torga publicou sob o pesudónimo Adolpho Rocha, para não falar do caricato Romaria, do padre Vasco Reis, célebre por ter roubado o prémio do SNI à Mensagem de Pessoa.

Pessanha, Florbela Espanca, Raul Brandão, Wenceslau de Moraes, José Régio, Irene Lisboa, Ferreira de Castro? Está lá praticamente tudo. E o mesmo se pode dizer de Nemésio, Sophia, Sena, Herberto Helder e por aí adiante. Do primeiro livro de Mário Cesariny, Corpo Visível, que muitos coleccionadores bem gostariam de ter, o matemático de Ponte da Barca dava-se ao luxo de ter dois exemplares.

Mas o que justificaria mesmo referência mais detalhada é o vastíssimo conjunto de lotes com livros, folhetos e manuscritos dos surrealistas portugueses, ao qual a Biblioteca Nacional deveria estar atenta. Entre os 84 lotes relativos a Luiz Pacheco, encontram-se, por exemplo, seis cadernos diários do autor e um dossier com material reunido para o livro Pacheco versus Cesariny, mas que não chegou a ser incorporado na obra. E ainda folhetos raríssimos, como "O Crocodilupa" (1958), título que evoca um "animal chamado Pacheco" que "gosta de se enfeitar com rabos de outros animais".

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