Em 2007 o Festival de Cannes comemorou 60 anos e o seu director, Gilles Jacob, lembrou-se de assinalar a ocasião com um filme. Ou, se se preferir, com 33 filmes, apresentados como um só, encomendados a 33 cineastas, 33 "autores", todos ou quase todos habitués de Cannes.
Trinta e três "cartas brancas", a preencher tendo em atenção dois factores estruturantes: respeito por uma duração pré-definida (todos os filmes têm três minutos) e obrigação de ter pelo menos uma cena numa sala de cinema.Essa obrigação acabou por se transformar num mote temático, que domina, com maiores ou menores variações e liberdades, às vezes cheias de ironia, praticamente todos os filmes. E é, no fundo, o elemento agregador de "Cada um o seu Cinema", pois dificilmente se encontra outro traço de união nesta heteróclita agremiação de realizadores, tão próxima da proverbial "salada russa", que põe lado a lado Iñarritu e Kaurismaki, Oliveira e Lelouch, Kiarostami e Wong Kar Wai, Cronenberg e Angelopoulos (não deixa de ser um divertimento: pegar na lista de realizadores envolvidos e formar pares "improváveis").
Há um paradoxo curioso, se nos pusermos a pensar nisto: celebrar o cinema e os "autores", e sobretudo a sala de cinema, com um filme que parece talhado a pensar na idade do "zapping" e do "clip" (nunca se fez filme que pedisse tanto a sua "youtube-ização"...). O paradoxo em si mesmo não representa nenhum óbice - não consegue é fugir ao óbice do "zapping" e do "clip", que como dizia o outro distraem mas não preenchem: se há um problema genérico em "Cada um o seu Cinema" é a dificuldade de muitos dos filmes para conseguirem encontrar algum peso dentro dos seus três minutos. Meia-hora depois da projecção, alguns já se estão a desvanecer na memória ("como é que era o do Gitai"?).Como conjunto de reflexões individuais sobre a cinefilia e o espaço, outrora encantado, da sala de cinema, é sempre interessante. Depois, é quase uma questão do temperamento de cada um (em filmes de três minutos não chega a ser possível dissociar o "estilo" e o "temperamento" de um cineasta, uma coisa faz a outra).
Da nostalgia beata de Claude Lelouch (com o seu "cinéma de papá" a que ele dá, enfim, um sentido literal) à frieza apocalíptica de Cronenberg ("At the Suicide of the Last Jew in the World in the Last Cinema in the World", o mais impressionante filme de todos). Da decepcionante anedota ilustrada de Roman Polanski à divertidíssima encenação do anedótico por parte de Oliveira (o encontro entre Kruschev e o Papa). Kiarostami a apontar a câmara para as espectadoras sentadas numa sala de cinema, numa espécie de "avant-gout" de "Shirin". Kaurismaki a filmar o sorumbático proletariado finlandês como se fosse uma sequência arrancada a uma das suas longas-metragens. David Lynch a conceber uma espécie de "instalação", que leva mais tempo a descrever do que a ver, sobre a tempestuosa experiência da "sala". Tsai Ming Liang e a sala de cinema como consolo desconsolado. Ou Nanni Moretti a falar para a câmara, sentado no lugar do espectador, como espectador.
O bom cinéfilo identifica os autores de cada um dos filmes antes de aparecer o genérico final. Se quiserem, também o podem ver como um teste às vossas capacidades de reconhecimento estilístico. Ou como uma demonstração do que é um "autor": um plano tem sempre assinatura.