A tragédia de Hillsborough foi há vinte anos. “Parece que foi ontem”
O polícia Tom Whiteley estava à espera de um dia de festa quando se deslocou em serviço a Hillsborough para o jogo das meias-finais da Taça de Inglaterra, em 1989. Em vez disso, ao final da tarde estava a carregar três adeptos mortos do Liverpool para uma morgue improvisada no ginásio do estádio. Tinham sido esmagados até à morte depois de terem sido atropelados por uma multidão quando decorria o jogo entre o Liverpool e o Nottingham Forest. Ao todo, morreram 96 pessoas. Ficou para a história como o pior desastre na Grã-Bretanha num estádio de futebol.
Nos dias a seguir ao jogo, a polícia foi criticada num documento oficial por falhas no controlo da situação. Consequência: a retirada das vedações em todos os estádios do país, levando a uma profunda reestruturação nos recintos de futebol em Inglaterra.
Para Whiteley, um polícia inexperiente de 28 anos, em serviço naquele dia 15 de Abril de 1989 no estádio do Sheffield Wednesday, o desastre despertou as pessoas para uma maneira diferente de encarar o futebol, desde o controlo das multidões às medidas de segurança.
“Todos estavam à espera de um bom dia, um dia em que todos os espectadores, famílias, adeptos pudessem vir e apreciar um espectáculo desportivo e nós fomos uma decepção porque fomos incapazes de manter em segurança as pessoas”, diz Whiteley, agora um inspector de polícia na esquadra de South Yorkshire, à agência Reuters.
De início, Whiteley pensou tratar-se de uma invasão de campo, mas logo se apercebeu “que tinha um desastre em mãos”. “As pessoas caíam para o chão, algumas estavam a ser arrastadas, outras pulavam por cima das vedações, mas muitas estavam a ser esmagadas contra as vedações”, descreve. As ambulâncias não conseguiam aceder ao relvado, por isso coube aos polícias e aos espectadores levar pelos seus braços os sobreviventes, usando até alguns placards de anúncios como maca.
Polícias a chorar“Imaginar que havia dezenas de pessoas e que a prioridade era retirar aqueles que já não podiam ser ressuscitados para haver espaço para os outros”, continua Whiteley. “A última pessoa que carreguei foi alguém que estivemos a tentar ressuscitar durante vários minutos antes de desistirmos e o colocarmos numa maca. Chegámos a um ponto que o colocámos de lado e partimos para outro. Todas as pessoas que levei já estavam mortas”.
“É difícil fazer isto com as macas e estar de uniforme de polícia, com o capacete enfiado, sente-se o coração a rebentar, a querer saltar do peito. Durou ainda um bom bocado de tempo. O ginásio tinha uma área grande e estava repleto de corpos quando terminámos. É difícil imaginar como devem ser 90 cadáveres ali. É uma situação difícil de se encarar”, acrescenta Whiteley.
“Mas também, de igual maneira, tínhamos pessoas que estavam desorientadas, polícias que conhecia há um tempo considerável a chorar e desorientados. E era-lhes muito difícil conseguir funcionar naquela situação”, prossegue. “Foi há vinte anos e é difícil imaginar toda aquela situação, passar por aquilo, o barulho, as pessoas, a desorganização”.
O pensamento de ter feito tudo o que podia tem ajudado Whiteley ao longo dos anos. Na semana a seguir, teve aulas para aprender como lidar com multidões descontroladas em recintos desportivos. “Penso nisso e no que poderia ter feito. Pensei sobre isso durante semanas a fio. Se houvesse saídas de emergência... podia ter usado. Mas penso nas circunstâncias com que me deparei e não poderia ter feito muito mais do que aquilo que fiz”, recorda.
“Parece que foi ontem...”O que fez foi carregar cadáveres e não se recorda dos que carregou. “Durante o inquérito, pediram-me para ir até à esquadra para ver fotografias de pessoas mortas e partes de roupa... mas não consegui reconhecer nada nem ninguém devido àquela experiência traumatizante”, desabafa Whiteley.
“Não consegui associar as caras. Nem agora consigo”. Os acontecimentos daquele dia ainda o afectam. “Eu gosto de pensar que sou capaz de trabalhar em situações de pressão, mas ainda me afecta e sei que no subconsciente está Hillsborough”.
O actual treinador do Sheffield Wednesday, Brian Laws, era jogador do Nottingham Forest na altura. Estava prestes a fazer um lançamento de linha lateral quando o jogo foi interrompido, a poucos minutos do final. “Lembro-me de estar a dar uma entrevista no relvado quando cheguei ao clube [Sheffield Wednesday] e não consegui deixar de olhar para o sítio onde fiz o lançamento. Estava tudo muito fresco na memória e nunca esqueci. Nunca”, conta aos jornalistas. "É uma cena inacreditável que se espera num campo de batalha, não num campo de futebol”.
O técnico do Nottingham Forest, Brian Clough, recusou-se a mandar os seus jogadores de volta ao campo quando soube que tinha havido mortes. “Toda a gente olha para isto como se isto tivesse acontecido há vinte anos. Parece muito tempo, mas, para aqueles que estiveram envolvidos, vinte anos parece que foi ontem. Conseguimos lembrar-nos de tudo o que se passou... fazer uma reconstrução e ter tudo bem presente na memória”, conclui Clough.
O difícil regresso a Anfield
Por detrás dos portões de Shankly, em Anfield, estádio do Liverpool, está um modesto relicário, um memorial de pedra em honra dos adeptos do Liverpool mortos em Hillsborough. Num artigo no “Guardian”, Adrian Tempany conta a sua história de sobrevivente. Traumas que ainda não ultrapassou, mesmo quando já passaram vinte anos.
“Sempre que olho para a lista de nomes, ordenados por ordem alfabética, os meus olhos vão inevitavelmente para dois nomes: Philip John Steele, 15, e David Leonard Thomas, 23. Numa tarde fria de Janeiro, fiquei siderado a olhar para esses dois nomes e passei suavemente o meu dedo pelo seu relevo. Nunca soube ao certo quão perto esteve o meu nome de ser inscrito entre Philip e David naquele memorial”, conta Tempany. “Por um lado, estive a segundos de perder a consciência e, talvez a vida, esmagado no recinto. São esses terríveis segundos que me têm afastado de Anfield há vinte anos...”, diz.
Um ano depois de Hillsborough, os pesadelos eram recorrentes. Lembrar-se das pessoas a serem espezinhadas, os gritos, os choros e o som de ossos a serem quebrados. E queria voltar a Anfield para saber se o futebol ainda tinha lugar na sua vida. E sim, tinha, mas só passados vinte anos.
“Há três meses conheci Anne Williams. Anne contou-me a noite de 15 de Abril em que viajou até Sheffield para identificar o corpo do filho de 15 anos, Kevin, que tinha sido espezinhado até à morte. Contou-me da dor que foi ter de enterrar o filho pequeno, de ter perdido o casamento e metade do peso. E de ter passado 18 anos em batalhas no tribunal, em vão, para reabrir o processo da morte de Kevin. Depois andou para a frente e conseguiu levantar os olhos". A confissão seguinte de Anne deu novo alento a Adrian: "Fui a Anfield no outro dia para um jogo. Estive no Kop [bancada mítica do Liverpool]. Foi brilhante”.