E, à terceira longa-metragem, depois de "O Pântano" (2001) e de "A Rapariga Santa" (2004), as águas dividiram-se. Há quem ache que Lucrecia se estampou ao comprido e há quem ache que Lucrecia deu o salto para cima que se esperava. E, contudo, longe da recepção complicada que "A Mulher sem Cabeça" teve em Cannes 2008, o que se revela é a confiança e a segurança de uma cineasta que ganhou coragem para levar o seu cinema mais longe sem por isso continuar a deixar de falar do que lhe interessa. Continua a ser um cinema da fuga em frente, da fraqueza, do remorso, da culpa, da dúvida; só que, agora, é-o um modo mais fluido, mais equívoco, mais suspenso.
Porque "A Mulher sem Cabeça" corre numa espécie de animação suspensa: a que Verónica (extraordinária Maria Onetto) sente depois de ter um acidente de carro numa estrada rural, bater com a cabeça no volante e evitar voltar para trás para ver o que atropelou. Uma pessoa? Um animal? Um ramo de árvore? Seja o que for, Verónica sente-se a flutuar durante alguns dias, como se aquele acidente tivesse alterado alguma coisa na sua química pessoal, como se já não fosse a mesma dentista de uma pequena cidade de província que tem uma vida confortável numa boa casa com dois carros e as filhas na universidade. Como se a sua vida tivesse mudado radicalmente - mas só dentro da sua cabeça. A que, alegadamente, perdeu.
É isto: uma história sobre uma mulher que perde as âncoras e percebe que o mesmo conforto de sempre já não chega para lhe garantir estabilidade. Que se convence, com uma segurança assustadora, que pode ter morto alguém, mas que vai aos poucos descobrindo que poderá nunca ter a certeza, e que começa a duvidar da sua própria sanidade mental quando tudo se começa a diluir como se tivesse sido um pesadelo.
E a câmara com que Martel acompanha Verónica está a contar a verdade ou está dentro da sua cabeça, a ver o que ela vê ou, mais correctamente, o que ela sente? Aquela noite no hotel existiu realmente ou foi sonhada? A realizadora argentina propõe-nos um pequeno quebra-cabeças existencial: dá-nos as peças todas e deixa-nos soltos para decidir o que elas querem dizer.
A levitação em que "A Mulher sem Cabeça" decorre não joga em nada contra o cinema "panela-de-pressão" de famílias rurais em crise permanente a que Martel nos habituou; só que, onde "O Pântano" e "A Rapariga Santa" levavam a fervura ao ponto de ebulição, o novo filme deixa o lume sempre brando. Como quem está confiante que já não precisa de ajuda para chegar ao fim da receita. A desorientação - de Verónica, do filme, do espectador - tem qualquer coisa do cinema oblíquo e seco de Antonioni, até no formalismo mais cuidado destas figuras perdidas ou talvez prisioneiras dos seus universos assépticos (digamos: mais o Antonioni do "Deserto Vermelho" do que o de "A Aventura"), mas sentimo-lo mais como homenagem respeitosa, inspiração para dar o salto, mais do que solução para um beco sem saída.
Se algum problema há com "A Mulher sem Cabeça" é que o laconismo visual da cineasta - que já existia nos filmes anteriores mas que aqui é levado muito mais longe - pode sugerir um certo autismo austero, uma espécie de circuito fechado que resiste teimosamente a quaisquer explicações (e o tempo continua a ser um dispositivo importante, que utiliza aqui a chuva e a tempestade como metáforas do que se passa dentro da cabeça de Verónica). Mas isso é também uma marca de autor - e, para nós, "A Mulher sem Cabeça" confirma Lucrecia Martel como uma das grandes autoras reveladas pelo cinema contemporâneo na década de 2000.