Depois de "Michael Clayton", que foi o primeiro filme realizado por Tony Gilroy, até então conhecido pelo seu trabalho de argumentista (para a saga de Jason Bourne, nomeadamente), "Dupla Sedução" volta a ambientar-se nos meandros do mundo empresarial americano, esse "corporate world" de tão má reputação nestes nossos dias de "crise global". A irrisão que "Dupla Sedução" opera sobre esse mundo cai certamente que nem ginjas, embora nesta perspectiva pareça conveniente notar que, se alguma "moral da história" existe no filme de Gilroy, ela pode traduzir-se num aforismo um pouco inquietante: "ri melhor o CEO que ri por último". À atenção do Presidente Obama, naturalmente.
Efeitos de realidade (ou de contemporaneidade) à parte, o centro de "Dupla Sedução", como o título indica (o português ou o original, "Duplicity"), está no "jogo duplo" praticado pelas personagens de Clive Owen e Julia Roberts. Ex-agentes da CIA que decidiram, com certeza muito bem, que a trabalhar para o Estado não iam lá e para enriquecerem mais valia porem-se ao serviço do sector privado e da espionagem empresarial. Ou, o que será mais correcto, empregarem-se no sector privado, mas ao serviço de si próprios. Ei-los então numa complicadíssima história cheia de segredos, mentiras e traições, que comunica perigosamente com a história pessoal e amorosa deles. A "duplicidade" do filme de Gilroy também está nisto - há uma intriga, digamos de espionagem, e outra, digamos romântica, que correm em paralelo num processo que tem (ou, idealmente, teria) o condão de estar sempre a obrigar o espectador a refazer a perspectiva que tem sobre as personagens e sobre a narrativa.
Idealmente, dissemos. O processo escolhido por Gilroy (a inserção de "flash-backs") nunca supera a sua condição, "automática", de suporte de um trabalho de "engenharia de argumento". Pensamos noutro filme americano recente, o "Antes que o Diabo Saiba que Morreste" de Sidney Lumet, que também usava o "flash-back" como figura maior mas onde cada "flash-back" vinha sacudir o filme, apontá-lo sempre para uma nova direcção. Em "Dupla Sedução" o processo reflecte apenas um bricabraque laborioso mas, no fundo, indiferente, mais para "confirmar" o filme do que para o abalar, mais para prolongar (até um pouco artificialmente) a "dúvida" que marca a relação dos espectadores com as personagens do que para a fazer viver em verdadeira perturbação. É o que mais se censura a Gilroy: num filme sobre o "engano absoluto", onde nada é o que parece, falta o engenho para transformar esse "engano" em algo mais do que um truque, previsível na sua... imprevisibilidade. Acolhe-se cada "twist" como fazendo parte da norma, um "puzzle" que se constrói em vez de se desmontar, ou um labirinto que afinal de contas é apenas um corredor (e o último plano, um "travelling" recto para trás, é um "movimento de corredor", se nos deixarem ver aqui uma espécie de "lapsus" revelador).
Claro que a quantidade de máscaras apostas às personagens tem consequências sobre elas. A opacidade "programática", construída à força, do par central (Owen e Roberts) resulta em personagens pouco interessantes, mecânicas, sem chama. Como em "Michael Clayton", as melhores personagens estão na margem, entre os secundários: o CEO que Paul Giamatti equilibra na fronteira com a caricatura mas a que atribui uma humanidade de pequeno crápula perfeitamente credível (e, mais entusiasmante, falível). Dito isto, "Dupla Sedução" deixa-se ver sem entusiasmo mas também sem exasperação. Na sua irrisão dos códigos do filme de espionagem às vezes faz lembrar algumas coisas de Soderbergh - mas menos "playful" e, seguramente, com muito menos estilo.
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