O animal de estimação

Há vinte anos - contem bem: vinte - que Paul Schrader não vê um filme seu estrear em Portugal. Desde "Estranha Sedução" (1990) que nenhuma das sete longas que o realizador de "American Gigolo" e "Mishima" e argumentista de "Taxi Driver" e "O Touro Enraivecido" assinou chegou a salas portuguesas, nem mesmo quando "Affliction ("Confrontação" na edição em DVD) valeu o Óscar de melhor actor secundário a James Coburn e uma nomeação para melhor actor a Nick Nolte. Foi tudo direitinho para DVD, deixando-nos a perguntar que raio de mercado é este que ignora um dos poucos genuínos autores sobreviventes do cinema americano dos anos 1970 - e a ironia é que o seu primeiro filme a estrear em Portugal em 20 anos é talvez o seu mais comercialmente "suicida" (mesmo incluindo "Mishima"), uma co-produção israelo-alemã feita à margem dos grandes estúdios onde o tema da culpa e do remorso, tão caro ao cinema de Schrader, é articulado de modo surreal e não raras vezes desconfortável.


Porque esta é a história de Adam Stein, que na Berlim dos anos 1930 era um "entertainer" de primeira craveira, no campo de concentração de Stellring era literalmente o judeu de estimação do comandante, e na Telavive dos anos 1960 está internado num hospital psiquiátrico a par de uma dúzia de outros sobreviventes do Holocausto. O romance de Yoram Kaniuk que serve de base a "Adam Renascido" foi aclamado como uma espécie de cruzamento entre dois dos livros mais influentes da sátira liberal americana dos anos 1970, "Artigo 22", de Joseph Heller, e "Voando sobre um Ninho de Cucos", de Ken Kesey - mas quando é a memória do Holocausto, tema central da identidade israelita e da diáspora judia contemporâneas, que está em jogo, a sensação é a de estarmos a penetrar num terreno minado que Schrader percorre com a tenacidade quase irresponsável que lhe reconhecemos, mas também com o lado não-me-ralo-nada de quem sabe que entre preso por ter cão e preso por não ter (e a expressão é apropriada neste caso), mais vale arriscar.

Daí que "Adam Renascido", com o seu humor escuríssimo forjado no negrume do coração dos homens e a sua tentação de sátira absurdista sobre a incapacidade de se poderem realmente conhecer todos os seus recantos, consiga o milagre de se equilibrar numa improvável corda bamba entre a irrisão e a seriedade, entre o niilismo e a generosidade.

Muito por culpa da interpretação fulgurante de um Jeff Goldblum literalmente possuído pela sua personagem, deixando-nos na dúvida sobre a extensão (ou a realidade) da sua loucura, transcendendo até a sua "Mosca" para Cronenberg. Mas também por causa do rigor formal da encenação de Schrader, que procura sempre manter uma ligação à realidade mesmo quando tudo o que rodeia Adam no gélido instituto "design" onde a acção decorre parece estar a derrapar para o surreal.

Claro que, quando descobrimos que a mais pura ligação emocional que Adam tem no instituto é com uma criança feral que julga ser um cão, em conexão directa com as suas experiências no campo de concentração às mãos de um oficial perverso (Willem Dafoe, arrepiante), tudo parece resvalar para um grotesco paredes-meias com o mau gosto - mas redimido sempre pela amargura do humor judeu (como quem diz: nós somos os únicos com autoridade para nos rirmos disto) e pela performance assombrosa de Goldblum. Por um lado, "Adam Renascido" é um filme que se inscreve sem problemas no actual panorama do cinema israelita, com o questionamento sobre a memória que está no centro da sua identidade; por outro, é inevitável pensar que por esta altura já começam a ser filmes a mais sobre o Holocausto (Ella Taylor, no "Village Voice", falava em Novembro último de "Holocaust porn" para descrever o modo como o Holocausto passou a ser identificado por Hollywood como símbolo padronizado de um cinema de prestígio e de "grandes temas").

No entanto, o filme de Schrader, que se inscreve com assustadora precisão na sua obra, passa pelo meio de ambos os passe-vites - é um "filme apátrida", israelita por financiamento mas rodado na Roménia por um americano com um elenco global e, sem evitar as ambiguidades morais, mergulha a fundo numa terapia de choque mista de exorcismo que é tanto o percurso do seu próprio herói como metáfora de um país que continua, para o bem e para o mal, prisioneiro da sua história recente. Isso faz de "Adam Renascido" uma fita tão fascinante quanto perturbante - e que seja este o reencontro português com o cinema de Schrader, por mais irónico que pareça, não é nada descabido.

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