O crítico Nathan Lee, na revista "FilmComment", lançou uma "boutade"que pegou: escreveu que "Milk" é "omais ''straight''" dos filmes de Gus VanSant - um cineasta homossexual. Quisele dizer que o filme sobre o autarcada câmara de São Francisco,homossexual (o primeiro políticoassumidamente gay a ser eleito paraum cargo público nos EUA, estávamosnos anos 70), que ajudou a fazer deSão Francisco um viveiro para asaspirações de uma comunidade e quehoje é ícone da militância gay, era umfilme... convencional. Isso, "straight",um filme biográfico, um "biopic",com voz "off" e tudo.
Masgostaríamos de perceber o que é quetem de convencional contar umahistória destas como quem conta ahistória de uma rua - a Castro Street,onde Milk chegou, viu e venceu (atéser morto por um colega de câmara,Dan White, em 1978) - como se essarua fosse a rua daqueles filmes que adesaparecida Hollywood inventavapara serem exaltadas as qualidadesamericanas. É isso mesmo: com umahistória da História gay Gus Van Santfaz "americana", esse génerotradicional, que era muito sobre o"centro" das coisas e sem permitir"desvios", que o cinema clássicoamericano cultivou no passado.
Podemos dizer, aliás, dorazoavelmente burlesco Milk,personagem em que Sean Pennmiraculosamente desaparece: Mr.Milk goes do Castro, isto é, à Câmarade São Francisco, como Frank Caprapôs James Stewart, Mr. Smith, a ir aWashington, isto é, a pedir a palavra.Isto de ser aparentementeconvencional, não tem nada deconvencional.Portanto: é toda a América numarua - e uma rua gay. ("Milk" é mesmoum filme político.) E essa forma depassar da história individual à históriade muitas pessoas gay e, mais umpasso em frente, à história de todas aspessoas, gay ou não, esse salto da ruaao país (e da América a todos nós), fazcom que se sinta em "Milk" a vibraçãode uma epopeia humana.
Concedendo que, depois de"Sunset Boulevard" (1950), um filmenarrado por um morto não é proeza -o "testamento" que Milk deixou, parao caso de ser assassinado, coisa queprevia que lhe iria acontecer, é a vozque nos acompanha em "Milk" -, já éassinalável, e é a pedra de toque destefilme comoventíssimo, o resultado dautilização das imagens de arquivo.
Com elas, e com aquilo que Van Santaprendeu nos seus filmes maisexperimentais, como "Gerry" (2002),"Elephant" (2003) ou "Last Days"(2005) - de que "Milk" está próximo,mais do que de filmes, esses sim,convencionais como "O BomRebelde" (1997) ou "FindingForrester" (2000) -, o realizadorarrebata-nos. Leva-nos para ummundo imaginário, onírico,"somewhere over the rainbow". Deum só fôlego, torna-se o criador deuma fábula - daquelas que falam denós com uma luminosidadeportentosa -, um prestidigitador daiconografia gay (o "Somewhere overthe Rainbow" de Judy Garland édespojado e entregue à sua maisdesesperada fantasia), um cronista deum período da História americana ede uma cidade. Desaparecida, quenão volta mais (será que existiu ou foimistificação da memória?). Milkmorreu, depois veio a Sida, e o sexo eos anos 70 ficaram retidos no domínioda fantasia mais nostálgica, sobrandoum extremado sentimento de perda.
Por falar dos mortos: das coisasmais espantosas de "Milk" é asensação de que estamos a serolhados, interpelados, por quem jáaqui passou, por quem já é História edeixou legado. "Milk" fala connosco,hoje. Da Proposta 6, que nos anos70 quis impedir os homossexuais deserem professores (Milk ajudou aderrotar essa proposta legislativa), àProposta 8, que hoje, na mesmaCalifórnia, negou a possibilidade decasamento de pessoas do mesmosexo...? Sim, disso também, masmuito mais do que isso, o olhar éabrangente, é para a América inteira,é para os que se sentem excluídos.
"Milk", pedaço de fantasmagoria que,afinal, deixa em aberto uma hipótesede renascimento, é um filme paratodos. "É preciso dar-lhes esperança",dizia Harvey Milk. Tem-se dito queé o primeiro fantasma de BarackObama a aparecer no cinemaamericano. Numa entrevista à revista"Attitude", Gus Van Sant concediaque sim.
E ainda alguém consegue dizer queé um filme "convencional"?