"Este Corpo que me Ocupa" é uma peça que, pela primeira vez na obra do coreógrafo, tem o rótulo autobiográfico. Nada do que se passa em palco fala da sua história, mas quando o ouvimos ficamos a saber que é ele que lá está
Não é de agora que João Fiadeiro tem o desejo de sintetizar a sua história, mas foi só há dois anos que decidiu que ia fazê-lo e que o meio escolhido seria um híbrido, qualquer coisa entre a performance e a conferênciademonstração. Tudo aconteceu naturalmente, até a escolha da sua cúmplice neste processo de decomposição, Paula Caspão, investigadora na área do cruzamento da dança contemporânea e da filosofia, com quem já tinha colaborado em projectos como "Existência" (2002).
"Este Corpo que me Ocupa", a peça que estreia hoje na Casa de Teatro de Sintra, fecha o ciclo num percurso de trabalho que passou por seis cidades (se excluirmos Lisboa) e teve na sua origem uma vontade: a de explorar o território da autobiografia e, ao mesmo tempo, a ideia do esbatimento entre a teoria e a prática.
O que o público vai ver hoje na pequena sala de Sintra está longe de se inserir na lógica do circuito de espectáculos em que Fiadeiro se move (e que inclui vários festivais e teatros de referência europeus, muitas vezes como co-produtores). "Este Corpo..." aconteceu, explica ao Ípsilon, porque houve um convite de Montreal para participar numa conferência e, por acaso, Paula Caspão também ia. Os dois mantêm intensa correspondência desde os seus primeiros trabalhos em conjunto e a vontade de voltar a colaborar juntouos muitas vezes à mesa dos cafés nessa ida ao Canadá para discutir o projecto. "Sempre escrevemos cartas um ao outro ao longo destes anos", diz o coreógrafo. "Tenho com a Paula um diálogo exigente e pertinente que me faz muita falta."
E esta planta?
Para chegar ao "Este corpo..." que se pode ver hoje, a equipa (inclui Walter Lauterer na luz e Arnold Haberl no som) passou por várias apresentações que encarou como produtos finais, umas vezes sob a forma de "espectáculo" (Frankfurt e Barcelona), outras de conferência (Lausanne e Paris). Tudo depende do contexto em que a peça é mostrada, garante Fiadeiro. O importante, explica, foi o método de trabalho usado, que lhes permitiu trabalhar com concentração total uma a duas semanas antes de cada performance e, depois, abandonar as coisas e seguir em frente, ganhando distanciamento do que até aí se produzira. "Este abandono foi essencial para poder pensar e explorar as perguntas que começámos a fazer no início."
No início havia um texto autobiográfico que Fiadeiro escreveu para o "Jornal de Letras" em Setembro de 2007 (já lá iremos) e a vontade de olhar de fora para o espaço não ocupado, para o vazio, para o "entre". "Procurámos sempre uma ligação entre o passado e o futuro, queríamos trabalhar esse espaço que fica entre dois tempos." Depois vieram as perguntas: Será que o "entre" se pode prolongar? E por quanto tempo? O que é o movimento antes de acontecer?
Em palco, apenas João Fiadeiro aparece, entre objectos e um diálogo projectado, o mesmo diálogo que ocupou seguramente metade do tempo de composição de "Este Corpo..." e que só começou a resultar depois de terem encontrado a pergunta "E esta planta, de onde é que ela vem?". Fiadeiro explica: "Esta pergunta permitiu-nos trabalhar, depois de muita escrita e de horas de diálogos gravados que não deram em nada. Foi o nosso equivalente ao 'Já chegou?' de Didi e Estragon em 'À Espera de Godot' [peça que encenou em 2000, a convite dos Artistas Unidos]. Permitiu-nos começar a imaginar o passado desta planta."
Autobiografia necessária
Imaginar passados é algo que Fiadeiro faz para não imaginar o futuro. Diz que não é capaz de o fazer, aliás. Pensar no que aconteceu - e imaginar outras possibilidades - é um hábito. No texto que escreveu para o "Jornal de Letras" no ano passado, aos 42 anos, fazia um esboço da sua vida, a mesma que nos habituámos a ver espalhada pelas suas criações, mas nunca antes como agora com este rótulo de "autobiografia" associado (ainda que "Este Corpo..." não tenha nada de "literal" dessa sua história).
No artigo que tem o mesmo título da peça agora em estreia, Fiadeiro fala da sua infância em viagem - nasceu em Paris, filho de pais exilados por causa da luta contra o regime; foi em bebé para a Argélia, onde já estavam a avó materna e o marido; depois para o Brasil e daí para o Algarve - de como o marcou viver por vezes afastado da mãe, da ausência do pai e, sobretudo, da irmã Leonor, que morreu na sequência de um trágico acidente com um elevador, quando João tinha nove anos (ela oito). Ele assistiu a tudo. "A minha história está sempre no meu trabalho. Sou sempre eu lá... As questões da morte, da memória, da ausência têm sempre a ver com esse acontecimento", explica, falando da necessidade que sentiu de tornar público tudo isto. "Depois desse dia fiquei vazio", escreve. "Ou desaparecia (e só não o fiz porque não sabia) ou enchia este corpo com qualquer coisa. E foi o que fiz. Enchi-o de mim mesmo."
Mas mesmo "cheio" o vazio permaneceu. "Nunca vai desaparecer. Aceito isso", diz ao Ípsilon. Talvez por isso opte por construir passados em vez de imaginar futuros. "Dar o passado como fechado é uma segurança, um mecanismo que o corpo gera, talvez para se defender. Mas o passado não está necessariamente fechado." Sem o nascimento do Gaspar, o filho de seis anos, Fiadeiro não teria publicado a sua história nas páginas de um jornal. Provavelmente não teria sequer conseguido escrevê-la assim. "Antes do Gaspar eu nunca tinha parado para pensar. Agia sem pensar... Melhor, agia para não pensar." Na sucessão de objectos que vão povoando o palco em "Este Corpo que me Ocupa", não há vestígios óbvio de autobiografia, mas o vazio está lá. E ele é a parte principal da história, a que nunca vai desaparecer.