Este último ponto torna difícil qualificar "O Amor dá-me tesão/Não fui eu que estraguei" como um disco a solo, mesmo que, à forma de melhor termo, o seja. Coube a Manuel Cruz o papel de fazer a "bricolage" e unir as contribuições dos vários músicos e não-músicos envolvidos. Nesse processo, libertou-se das amarras das canções (das quais é um dos melhores artífices em Portugal) e criou uma música original, irrequieta e diversa, que alarga o formato canção por via do erro, do acidente, do inusitado. Canções de corpo inteiro convivem com pequenos trechos instrumentais (pedaços jazzísticos, pequenos milagres só com guitarra gravados de forma rudimentar), gravações (gaivotas, cães, uma mota, um bispo brasileiro) e mini-canções, como "Mau hálito" e "Insónia", a remeter para os Ornatos em versão condensada. "Diz-me se aprovas" é bom exemplo da estética de justaposição que Manuel Cruz encontrou: cola ritmo feito com vozes, sugestões orientalizantes de violino e cítara e os notáveis jogos de palavras a que Cruz já nos habituou. "Ainda pode descer" inspira suspense via electrónica e teclados, convoca sopros jazz e guitarra funk e inventa uma segunda parte com passagem "spoken word". Foge Foge Bandido mistura tudo, sem que isso signifique iconoclastia, mas antes puro deleite com o som e as suas possibilidades. Mas nem tudo é mistura. Dois exemplos: "Canteiro", maravilha de órgão, guitarra acústica e voz, tudo ao fundo, etéreo; e o lamento a banjo e cavaquinho de "Ninguém é quem queria ser" ("Somos a fachada de uma coisa morta/E a vida como que a bater à nossa porta"). E há canções destinadas a serem clássicos entre a larga comunidade de fãs de Cruz, como "Tirem o macaco da prisão", a lembrar a boa disposição e alusões sexuais dos Ornatos de "Cão!", e "Canção da canção triste", com trompete mariachi. Se nos Pluto e nos Supernada, as bandas que mantém em paralelo, Manuel Cruz parece forçado a conter o seu talento perante as condicionantes da convencional canção rock, nos Foge Foge Bandido liberta a sua imaginação, sem freios. Eis um disco que opera um delicioso milagre: não é um álbum de canções, nem uma colecção de desvarios, mas é tudo isso e mais ao mesmo tempo. É como se as canções fossem esventradas e desse acto nascesse um novo ser, mais bonito.
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