Viggo Mortensen no festim nu de Cronenberg

É o que faz. E Cronenberg capta todos os suados centímetros quadrados da carne tonificada de Mortensen, enquanto este está a ser implacavelmente socado, cortado e lançado contra as paredes da casa de banho/sauna por dois lutadores profissionais, transformando uns dolorosos quatro minutos de filme numa afirmação da quintessência Cronenberg.

"Promessas Perigosas" explora a ténue fronteira entre fragilidade e brutalidade, humanidade e horror na vida de três londrinos: um motorista da máfia russa e "dealer" ocasional, Nikolai Luzhin (Mortensen); uma parteira de Londres, Anna Khitrova (Naomi Watts), que tenta reunir um bebé órfão com a sua família russa; um patrão da máfia, Semyon (Armin Mueller-Stahl), que oculta o seu negócio de escravatura sexual por trás de uma fachada de afável proprietário de um restaurante.

O filme é a primeira colaboração de Cronenberg com Mortensen depois de "Uma História de Violência" (2005), que recebeu uma nomeação para o Óscar e foi um êxito da crítica e comercial, e que os fãs do trabalho anterior do cineasta canadiano - "Irmãos Inseparáveis"/"Dead Ringers", "Festim Nu"/"Naked Lunch" ou "A Mosca"/"The Fly", entre outros - consideraram surpreendentemente acessível. O que não é dizer pouco.

As críticas têm elogiado a total imersão de Mortensen no seu papel - ao adaptar a sua linguagem corporal e ao aperfeiçoar o sotaque -, classificam a sua interpretação de "brilhante" e mesmo com "calibre de Óscar". E, não obstante o seu tema perturbador e a já memorável cena de luta, o filme poderá ter um êxito comercial ainda maior do que "Uma História de Violência." Contém apenas três cenas de violência. Mas Cronenberg confere a cada retalhar de garganta, a cada poça de sangue um efeito quase tridimensional. "Tenho uma abordagem muito existencial do corpo humano", diz Cronenberg. "Levo o corpo a sério [como se] estivesse na realidade a fotografar a essência dessa pessoa." "A não ser que se tenha um enredo com grande consistência, não interessa se as coisas têm bom aspecto ou não", acrescenta Mortensen. "Porque tudo se reduz, no fundo, à prática da brutalidade. É isso que gosto nos filmes dele [Cronenberg]. São como a vida real."

Mortensen é o segundo actor na carreira de trinta e tal anos de Cronenberg a colaborar por duas vezes com o cineasta (Jeremy Irons é o outro, tendo interpretado o papel dos ginecologistas gémeos em "Irmãos Inseparáveis" de 1988 e o do diplomata francês René Gallimard em "M. Butterfly" de 1993). A afinidade entre Mortensen e Cronenberg ficou patente quando, recentemente, os dois desconstruíram a cena de luta de "Eastern Promises" sentados frente a frente no quarto de hotel do realizador em Beverly Hills, lançando piadas e muitas vezes completando os pensamentos um do outro. Mesmo assim, Cronenberg comentou que tivera muito trabalho para persuadir Mortensen a aceitar o papel de Nikolai. "Ele estava a fazer-se difícil," conta. "Sou sempre muito reticente até ter uma ideia mais aprofundada do que se trata", responde Mortensen. "Quis garantir que iria ter o tempo necessário para me preparar."

Mortensen faz uma pesquisa exaustiva das suas personagens. Para compreender Joey, um mafioso que se torna um homem de família numa pacata cidade em "Uma História de Violência", Viggo fez uma viagem pelo Midwest e passou muito tempo a gravar a voz do tio da sua co-protagonista, Maria Bello, um nativo de Filadélfia, para captar o seu sotaque.

Para "Promessas Perigosas" partiu sozinho para Moscovo, São Petersburgo e para a região da Sibéria nos Montes Urais, passando semanas a percorrer a zona sem tradutor. (Fala dinamarquês e espanhol fluentemente e faz-se entender em mais quatro línguas.) Estudou os "gangs" da organização Vory v Zakone (Ladrões dentro da Lei). Leu livros sobre a cultura das prisões russas e a importância das tatuagens feitas na prisão como currículos criminais. Aperfeiçoou o sotaque siberiano da personagem e aprendeu várias deixas em russo, ucraniano e inglês. Durante as filmagens, usou contas anti-stress feitas nas prisões com isqueiros de plástico derretidos e decorou a sua caravana com cópias de ícones russos.

O trabalho de Mortensen acabou, em última análise, por se tornar a base para o seu papel, tendo levado a modificações no guião e inclusivamente fornecido pistas a Cronenberg. O actor elogia o realizador por este lhe conceder liberdade criativa para levar as suas personagens a níveis surpreendentes. Cronenberg afirmou que não poderia trabalhar de outra maneira. "Na verdade, inventei-me como realizador. Imensos realizadores são muito territoriais e não querem ouvir quaisquer sugestões de outras pessoas, especialmente dos actores." "Não querem admitir que não sabem uma determinada coisa", opina Mortensen. "É uma questão de controlo e receio", segundo Cronenberg - ele, pelo contrário, pede aos actores que "venham divertir-se". "Quando se aceita essa infantilidade", afirma, "tudo o resto se torna mais claro."

A nudez de Mortensen na cena da luta é um exemplo perfeito de como a relação entre actor e realizador foi benéfica para o filme. Apesar da sua complexidade - uma luta corpo a corpo entre três sujeitos num espaço acanhado e escorregadio -, os ensaios levaram apenas algumas horas e ao fim de dois dias a cena estava finalizada. "Eu sabia que estava em boas mãos no que tocava ao realizador", diz Mortensen. "Não seria uma exploração... Depois daquela luta, a minha personagem sabe que tudo está diferente. Não havia outra forma de fazer aquilo. Portanto, em frente. Quando mais depressa acabássemos, mais rapidamente poderia curar-me." "O caracterizador dizia: "Viram como os joelhos do Vigo estão inchados?"", acrescenta Cronenberg. "Eu respondi: "Não. E não me fales nisso.""

Evocando a sua vigorosa e explosiva cena de sexo numa escada em "Uma História da Violência", com Maria Bello, Mortensen observou sarcasticamente. "É vingança para Maria Bello."

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