O elogio do bimbo

"As Corridas..." é a geração que está a mudar a comédia americana a virar-se para dentro da América e a dizer: sim, é isto que nós somos - broncos e orgulhosos de o ser - mas, para o bem e para o mal, é isto que nós somos... e até gostamos de nós assim. A geração que está a mudar a comédia americana? A produzir está Judd Apatow, o autor da série "Freaks and Geeks" e realizador do excelente "Virgem aos 40 Anos". A dirigir e escrever, Adam McKay, um dos criativos do programa "Saturday Night Live" e previamente autor de "Anchorman", fita que se tornou num dos grandes cultos recentes da comédia americana após uma carreira em sala inexistente (em Portugal, nem chegou a estrear). No papel principal e a escrever com McKay, Will Ferrell, outro aluno do "Saturday Night Live" lançado para o estrelato no grande écrã por "O Falso Duende" (2003), de Jon Favreau, e que vimos depois (bem) em "Melinda e Melinda" (2003) de Woody Allen, (mal em) "Casei com uma Feiticeira" (2005) de Nora Ephron e (muito bem) como o dramaturgo nazi de "Os Produtores" (2005) de Susan Stroman. O seu irredutivelmente bronco corredor de automóveis da Carolina do Norte é tão assustadoramente próximo da realidade que começamos a perguntar onde é que está a fronteira entre a paródia e a seriedade. Os logotipos dos patrocínios e as constantes referências a cadeias de "fast food" são publicidade encapotada ou apenas um retrato pós-moderno de uma sociedade reduzida ao mínimo denominador comum? É a pergunta que Ferrell e Adam McKay querem que façamos. "As Corridas Loucas de Ricky Bobby" é um filme inteligente sobre gente estúpida, feito por gente inteligente que sabe que não há nada de estúpido nesta gente.

São todos os lugares-comuns da (re)invenção do sonho americano que Ferrell e McKay desfasam subtil mas visivelmente nesta história decalcada dos "Dias de Tempestade" de Tony Scott, sobre um corredor inexperiente que se torna num triunfador inesperado e num egocêntrico frenético antes de um acidente o devolver à estaca zero, e o levar a encetar uma travessia do deserto para reencontrar o caminho do sucesso. O retrato da "heartland America" é ácido e terno, cheio de bonecos memoráveis agarrados com ganas por um notável elenco de conjunto, com destaque para uma composição fantástica do grande John C. Reilly e para o extraordinário boneco de Sacha Baron Cohen (sim, Ali G, sim, Borat), como um corredor de automóveis "gay" francês que lê Camus enquanto guia, provando que até a imagem bronca que os americanos têm dos outros é presa válida.

Sim, é verdade que estas personagens são alvos fáceis, mas o engenho de McKay e Ferrell é não nos pôr a rir delas, antes com elas. Em nenhum momento há condescendência; antes uma verdadeira afeição por esta gente para quem a maior ambição é ser campeão do mundo numa liga de carros que não existe fora dos EUA e que é ignorada pelas cidades grandes das duas costas. Mas porque é que essa ambição há-de ser menor do que as outras? A arte de Adam McKay e Will Ferrell é fazer passar por baixo da comédia palerma que "As Corridas..." (também) quer ser uma outra comédia, lúcida e inteligente, sobre uma América de cromos que é demasiadas vezes olhada com displicência, um elogio do bimbo que também tem direito à vida - como quem diz que não há uma única maneira "aceitável" de perseguir o sonho americano, mas muitas. Os horizontes podem ser limitados, mas não é por isso que deixam de ser horizontes. E não são só os americanos a terem bimbos.

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