Invocar "Os Filhos da Noite" ou "A Fúria de Viver" parecia reduzi-lo a um género, a uma temática adolescente de contestação, prender o que se assumia como uma atitude nas malhas do "film noir". Ora, "Noivos Sangrentos" passava pelo "pastiche", mas aspirava a superá-lo; visitava a iconografia do passado, mas possuía a ambição de a rasurar, numa epopeia de pequenas dimensões que refizesse a paisagem, reescrevesse a História, reinscrevesse o indivíduo numa americanidade agressiva e hostil. Tal como "You Only Live Once" (1937), segundo filme americano de Fritz Lang, "Noivos Sangrentos" pretendia intervir tanto a nível estético, como a nível ético, nas possibilidades de representação do sistema, com a liberdade absoluta da renovação de conceitos, sem nunca romper, claramente, as amarras com os modelos. Queria ser novo e revolucionário, sendo reconhecível e "integrável".
"Dias do Paraíso" / "Days of Heaven" (1978) veio acentuar a situação dilemática do cinema de Malick. Quanto mais se lhe reconhecia um estilo próprio, tanto mais se detectava uma inadaptação irresolúvel: repetindo tiques e maneirismos, o filme isolava-se numa espécie de pose de filme europeu impossível, fechado numa auto-consciência de "genialidade" comedida. Mais do que artístico, era "arty", queria apresentar-se com a caução de um objecto formalmente transformador. Richard Gere não tinha a mesma inocência comovente de Martin Sheen e de Sissy Spacek. A sua representação hipnótica e sonâmbula tornava óbvia a contradição de uma personagem aprisionada num universo auto-reflector e narcísico.
Um filme iluminava o outro, para o melhor e para o pior: Malick possuía um talento desmedido e deixava-se seduzir pelo espelho que construía à sua frente, como refractor de uma América abstracta e desconcertante, desvelando uma megalomania sem limites.
Quando regressou, em 1998, depois de vinte anos de ausência, durante os quais "se fez esperar", com o estranhíssimo filme-de-guerra, "The Thin Red Line"/ "A Barreira Invisível", cumpriu-se uma espécie de retorno messiânico. A relação entre paisagem e violência continuava a ser conflituosa. A obsessão pelo "belo" dominava a acção, desde o prelúdio quase etnográfico, ao grafismo abstracto da guerra que se não vê, mas se sente, se ouve, se respira. O gosto pelo monólogo, pelo tratamento alegórico dos materiais, o narcisismo do olhar sobre o real (e sobre o filme como reflexo) mantêm a mesma noção de "estilo próprio" e unificam os três filmes, para além das suas dissemelhanças.
poema visual."O Novo Mundo", afina pelo mesmo diapasão, reincide nas características próprias do olhar de Malick, atento ao esplendor da paisagem, ao fulgor de cada reflexo na água ou nas árvores, com uma fragilidade narrativa que contrasta com a intensidade da intervenção sobre um corte na História ilustrada, com a precisão de um metrónomo e a assimetria de um espelho convexo.
O objectivo principal passa por uma ambiciosa saga dos primórdios da América, debruçando-se sobre os amores primitivos de Pocahontas e do capitão John Smith, com extraordinário cuidado na reconstituição desde os trajes ou pinturas de guerras, das condições de vida à fotografia pictórica dos locais onde tudo "parece" ter decorrido. Como poema visual, o filme cumpre, na perfeição o seu programa, com um "pastiche" wagneriano a dar o tom semi-épico a um documentário que oscila (bem à maneira de Malick) entre o National Geographic de luxo e a grandiloquência de uma epopeia histórica. A voz "off" duplica a imagem, explica o já visto e resiste, como sempre, a uma narrativa factual, preferindo acumular sinais, indícios mínimos, preciosas notações de pormenor.
A violência e a morte inscrevem-se, assim, numa espécie de vazio psicológico e referencial, que o realizador escolhe como pano de fundo para os amores vagos e trágicos do par heróico. Tudo passa pelo crivo do belo artístico com uma proficiência desmedida: a belíssima estreante Q"Orianka Kilcher (Pocahontas) exibe os seus dotes físicos e mostra uma assinalável fotogenia, Colin Farrell passa pelo filme com uma discreção que não justifica o estrelato, Christopher Plummer e Christian Bale "estão", num estatismo consentâneo com a lentidão de um processo de descoberta da História, "au ralenti". A mesma rarefacção abstractizante de "A Barreira Invisível" apossa-se dos momentos de acção, espoletando qualquer emoção digna de menção. O olhar é neutro, límpido, perfeito, mas, em última análise, "inútil".
A reverência pela figura mítica de Pocahontas resulta numa serenidade olímpica, num panteísmo por encomenda, numa simbiose entre a animalidade e a adaptação ao meio, com um inglês (demasiado) impecável e uma pureza, digna de uma sombra, de um arquétipo. As revoltas, a fome, o confronto com a natureza hostil, tudo decorre numa plácida paleta de meios tons de poema tonal, construído sobre uma vaga reminiscência da História. Cada plano é estudado, recomposto, retocado, cada movimento de câmara revela horas de solene (e pomposa) atenção à multiplicidade de símbolos e de significados ocultos: as penas de amor aparecem entrosadas num complexo enquadramento a refazer primitivos americanos, quadros de uma densidade de composição requintadíssima. As imagens de Inglaterra tem o cuidado de citar quadros de época, com um rigor maníaco. A beleza entra pelo filme dentro, como fim em si, anulando toda e qualquer mácula, toda e qualquer imperfeição, num maneirismo desesperado, pronto a atingir o ponto em que arte se alimenta canibalísticamente de si própria. O filme dura pouco mais de duas horas, poderia durar vinte. O tempo não conta para um mundo em que a contemplação se esgota no acto de contemplar.
Retiramos prazer deste exercício quase onanista de cinema? Sem dúvida, mas lembramo-nos, como nunca, da frase famosa de Samuel Fuller, no filme de Godard, "Pedro, o Louco": "Cinema é emoção". E este "O Novo Mundo" é frio, letal, mais-que-perfeito, embora belo como uma estampa.