Não há famílias perfeitas e quem disser o contrário mente. É por isso que não nos surpreende que a ilustração de manual da família-modelo americana que David Cronenberg desenha nos primeiros minutos de “Uma História de Violência” seja mesmo só isso: uma ilustração de manual. Já desconfiamos que há ali qualquer coisa que não joga bem. Cronenberg sabe-o e brinca connosco. Estica a ilustração até ao ponto de ruptura, passa 20 minutos a encenar pacatamente o quotidiano desta família-modelo, sempre com a paciente pacatez do entomologista que sabe que é uma questão de tempo até as coisas se revelarem. Há sempre um pesadelo para cada sonho; há sempre um preço para cada opção. Chegou a altura de Tom Stall/Viggo Mortensen pagar o seu: aceitar a dúvida que se insinua de que ele não é quem diz ser, depois de um acto de heroísmo demasiado lesto para ser apenas obra do acaso, depois de estranhos visitantes que insistem em chamá-lo por outro nome. Tratá-lo como um assassino profissional, homem de mão de “gangsters” de Filadélfia, e não como o pacato pai de família e proprietário de um “diner” perdido no Midwest americano para quem os sarilhos são a última coisa que ele quer arranjar. Ele nega. Mas a dúvida está instalada. O paraíso está, definitivamente, perdido. E mesmo que se possa lá voltar, já não será o mesmo. E, contudo...
“Uma História de Violência” é um Cronenberg “diferente”, diz-se. Um Cronenberg “de encomenda”. É verdade. É uma adaptação de uma novela gráfica, com um argumento que lhe foi entregue “pronto-a-filmar"; é um filme que o cineasta aceitou para compensar o insucesso de “Spider”, projecto pessoal onde investiu financeiramente e perdeu dinheiro. É, à superfície, um “thriller” assumido, filme mais convencional do que as suas habituais histórias de horror mais ou menos visceral. É, com 32 milhões de dólares, o maior orçamento de realização que já teve - e, com 30 milhões de receitas de bilheteira só nos EUA, o seu maior sucesso comercial em terras americanas desde “A Mosca”, em 1986.
Tudo isto é verdade - mas não tanto que não se vejam nele as marcas registadas do canadiano. As aparências iludem (como o próprio filme não hesita em relembrar repetidamente): este filme que à partida parece tão pouco “seu”, tão pouco “de autor”, tem o seu lugar cativo na sua obra e acaba até por confirmar um progressivo afastamento de Cronenberg do conceito do “corpo mutante” em direcção à “alma mutante” que já estava em “Spider”, onde tudo se passava, literalmente, dentro da cabeça de um homem. Aqui, o corpo é sempre o mesmo - é aquilo que o faz mexer que se altera, que se transforma, que se transmuta. E, para um filme que parecia ser “vendido”, “Uma História de Violência” é a obra de Cronenberg mais unânime junto da crítica em anos. Nos EUA, só mesmo Todd McCarthy, da “Variety”, decepcionado pela aparente banalidade do objecto, fugiu do consenso; pela Europa, foi um dos filmes do ano de 2005 de quase todos os mensários de cinema (o atraso na estreia é mesmo só português, na sequência de questões contratuais).
Nada mau para um filme que se delicia em fazer implodir o Sonho Americano, detonando as cargas directamente do seu interior, colocando uma família-modelo em confronto com os seus próprios fantasmas, com a enganadora ilusão das aparências, com uma inocência que, muito provavelmente, nunca existiu - porque é esse o segredo de “Uma História de Violência": ninguém é inocente.
o benefício da dúvida. A questão que interessa a Cronenberg não é, verdadeiramente, se Tom Stall é ou não quem diz ser (e fiquem descansados aqueles que não viram ainda “Uma História de Violência”, porque não se revelará aqui a resposta). O cineasta acha muito mais interessante que aquilo que altera a visão que os outros têm de Stall não é a violência que ele perpetra - a morte a sangue-frio de dois criminosos que ameaçavam de morte o pessoal do café que dirige é apenas o “macguffin” que engata a acção. Essa violência brutal testemunhada como “legítima defesa” em nome da integridade da comunidade é, até, uma espécie de reforço da sua idoneidade, entendida como uma transcendência da sua moralidade em nome da defesa dos seus iguais. Não, o que destrói a idílica imagem da “smalltown” americana pacientemente construída nos primeiro momentos é, antes, a dúvida que se instala quando se levanta a possibilidade de Tom Stall ser outra pessoa que não aquela que todos conhecem.
Cronenberg demonstra como a certeza é frágil, como o espírito semeia uma dúvida metódica que vem negar a segurança das emoções: o Tom Stall que mata dois criminosos que ameaçam o seu café, o Tom Stall que se suspeita de não ser quem diz, é exactamente o mesmo Tom Stall que defende junto do filho adolescente que as coisas não se resolvem com violência, que é um pai e marido extremoso. Continua a ter o mesmo rosto, os mesmos olhos, o mesmo corpo. Não foi ele que mudou. O olhar dos outros e, particularmente, o da sua família é que, de repente, integra essa dúvida que não existia antes e vem colorir irremediavelmente todas as suas acções. É a estratégia da “contaminação viral” de Cronenberg, que encena com o seu distanciamento tradicional o modo como o contágio da dúvida, pessoa a pessoa, acaba por desintegrar esta família-modelo, como uma serpente que lança o caos no Paraíso. Não é por acaso que as cenas-chave dessa mutação familiar são os dois momentos de sexo entre Tom e a sua esposa Edie: duas faces de uma mesma moeda, com a aparente ingenuidade da primeira substituída por um desejo quase animal na segunda, com a dúvida instalada a reforçar a carga transgressiva de uma sedução que passa de inocente a perigosa.
A questão não é se Tom Stall é ou não inocente ou culpado daquilo de que é acusado; a questão é saber se Tom Stall pode reinstalar a certeza e a confiança, entendidas aqui como segurança, num núcleo familiar desestabilizado, e qual o preço que ele terá de pagar para o fazer. A violência que o título evidencia - e é isto que é extraordinário no filme, desde o genérico/prólogo Lynchiano aparentemente periférico à narrativa - está longe de ser a excepção ou a questão central que movimenta o filme. Ela faz parte deste mundo, é tão natural como ir beber um copo de água ou abrir um armário para tirar roupa, é apenas mais um elemento do cenário, um meio para atingir um fim. Esse fim é a manutenção do idílio da “smalltown”, como uma espécie de “reserva natural”, “área protegida” que se deve manter pura e não contaminada. Preservar o Sonho Americano de ser possível recomeçar sempre do zero, noutro lugar. Mas, uma vez a dúvida instalada, será possível continuar a acreditar nele?
“Uma História de Violência” é quase um ensaio académico sobre os esqueletos no armário da família ideal, tal a frieza de entomologista com que Cronenberg se aplica a enumerar e, depois, a subverter os lugares-comuns do “thriller” e do filme de acção. Que ninguém duvide que este é, de facto, um Cronenberg “mainstream” - a sua secura depurada e económica chega, até, a ter alguma coisa de Clint Eastwood - mas por trás dessa opção “mainstream” esconde-se uma meditação desconfortável (mas não o são todas?) sobre a natureza humana. As aparências iludem. David Cronenberg só quer que não nos esqueçamos disso.