Manuel Alegre: "Esta candidatura é um facto novo que desarruma os hábitos e o sistema"

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Alegre entende que o Presidente deve ter um papel mais interventivo, tentando restabelecer a confiança dos portugueses no sistema político-partidário Miguel Ribeiro Fernandes/Lusa

Para além da estabilidade política, é necessário dar prioridade ao combate a tensões sociais que possam surgir com a crise económica. Por isso, o candidato entende que o Presidente da República deve ter um papel mais interventivo, tentando restabelecer a confiança dos portugueses no sistema político--partidário. Alegre advoga ainda que o magistério não deve ser apenas de influência, mas também de "essência".

Manuel Alegre rejeita que interpretem a sua candidatura como uma reacção de despeito pelo PS ter apoiado Mário Soares. Reclama independência e renovação e critica Soares por protagonizar uma candidatura de "continuação". Não acredita que Cavaco Silva possa colocar em risco a democracia, mas sublinha que o ex-primeiro-ministro é alguém que "tende a crispar e a criar tensões na política".

PÚBLICO - Agora que todas as candidaturas foram apresentadas, continua a pensar que a sua candidatura faz sentido, que vai mobilizar o eleitorado de esquerda e vencer as eleições numa eventual segunda volta?MANUEL ALEGRE -

Não se trata só do eleitorado de esquerda. Uma candidatura presidencial dirige-se a todo o eleitorado e os dados mostram que havia espaço e necessidade de uma candidatura como a minha. Claro que sou um homem de esquerda e o meu objectivo é mobilizar a esquerda, mas dirijo-me a todo o eleitorado que se reconhece nos valores da liberdade e da democracia.

Mas há algum candidato que não corresponda a esses valores da liberdade e da democracia?

Não. Isso está ultrapassado. São fantasmas e papões que devemos enterrar. Há diferenças na leitura do funcionamento do sistema político, da situação do país, da situação de Portugal no mundo. Há concepções diferentes sobre o que deve ser o papel do Presidente da República. Mas todos os candidatos respeitam os valores democráticos que estão consagrados Constituição.

Que características a diferenciam a sua candidatura da de Mário Soares?

A independência, não estar ligado a nenhum aparelho partidário. Não que eu seja contra os partidos, pois defendi sempre a essência dos partidos, sobretudo quando eram proibidos.

Mas se o PS tivesse apoiado a sua candidatura não deixava de ser candidato por causa disso...

Bem, agora sou candidato de outra maneira. Nestas condições e com estas características, muitas pessoas que querem intervir e não se reconhecem nos partidos tal como eles funcionam encontraram comigo um motivo de mobilização. Foi um teste à cidadania que teve uma resposta positiva. Sobretudo há pessoas que militaram muito no princípio da revolução, ou até antes, e depois se cansaram, e que encontram aqui um espaço de intervenção.

Estamos a falar de pessoas mais velhas...

Temos também muitos jovens. Por outro lado, esta candidatura é, em relação à de Mário Soares, uma candidatura de renovação. Renovação de protagonistas, métodos e propostas. A dele é de continuação.

Se tivesse o apoio do PS, o seu discurso seria diferente?

Fui candidato a secretário-geral do PS e não disse coisas muito diferentes daquelas que estou a dizer agora, nomeadamente sobre a lógica aparelhística, os blocos de interesses, a necessidade de os partidos se abrirem e se renovarem. Além disso, uma candidatura presidencial não é suprapartidária, mas sim apartidária, mesmo que seja protagonizada por um membro de um partido ou pelo líder partidário. Depende da vontade de um cidadão. Pode ser apoiada por partidos ou não. Este é um facto novo que desarruma os hábitos e o sistema.

Mas esteve ou não à espera que a direcção do PS o apoiasse?

Não estive. Isso é uma história sobre a qual já falei...

Mas há diferentes versões.

Só há uma versão. Tenho a consciência perfeitamente tranquila.

Ainda não a contou.

Nunca houve um acordo formal. De facto, Sócrates falou comigo várias vezes. Ele tinha um candidato.

António Guterres...

E, se bem se lembram, disse que ele não queria ser candidato. Nunca houve um acordo formal porque eu próprio não tinha esse problema resolvido dentro de mim. Depois, quando reconheci a inevitabilidade de ser candidato, pela ausência de outro e por ser um imperativo cívico, apareceu a candidatura de Mário Soares.

Sentiu que não foram frontais consigo?

Senti. Mas isso só tem uma versão e eu acredito na versão do secretário-geral do PS.

Que é qual?

Que não foi propriamente ele que foi pedir ou que fez esforço para... Foi um bocado ao contrário. Mas não queria entrar muito nesse assunto.

Mário Soares diz que foi a direcção do PS que lhe pediu para se candidatar.

É a palavra de um contra a palavra do outro, mas acredito na versão do secretário-geral. Mas a partir do momento em que Mário Soares se mostra disponível... Ele é fundador do partido...

Alguns dirigentes do PS que o apoiaram há um ano estão agora com a direcção do partido no apoio a Mário Soares. Ficou magoado?

São amigos meus, por quem tenho grande estima, que têm responsabilidades políticas...

Gostava de ter o seu apoio?

Lá gostar, gostava. Mas mantemos relações de grande amizade. Eles respeitam a minha decisão, eu respeito a deles.

Não receia que vejam na sua candidatura despeito por não ter tido o apoio do PS?

Talvez, mas não é uma candidatura de despeito. As circunstâncias mudaram porque recebi centenas e centenas de mensagens e tive muitos sinais, telefonemas, cartas, pessoas que vinham ter comigo na rua. Percebi que havia qualquer coisa. Que as pessoas não se reconheciam nas candidaturas presidenciais, nomeadamente nas da esquerda, mas também na da direita. Fizeram-me esse apelo por reconhecerem em mim um certo espírito de independência ou pela própria circunstância em que eu fui colocado, ou por elas próprias estarem zangadas com o funcionamento do sistema político e com a lógica dos partidos. Tenho muitos documentos que mostram bem o estado de espírito das pessoas.

Qual é esse estado de espírito?

De desencanto, de descrença, mas ao mesmo tempo de vontade de participação, de que algo de novo acontecesse. E, com razão ou sem ela, viraram-se para mim. As pessoas cansaram-se de ser chamadas a pronunciar-se sobre decisões que são tomadas em pequenos directórios. Querem participar, escolher, e uma candidatura como esta oferece outra oportunidade de escolha.

Tem sido visto muitas vezes como uma voz dissidente. Não votou a revisão constitucional [1982] nem a lei da segurança interna, opôs-se às mudanças na segurança social do governo Guterres, não foi ao último congresso da FIL. A sua intervenção parece remeter para o imaginário de uma esquerda que aparentemente tem mais vocação de oposição do que de poder. Reconhece-se nessa imagem?

É possível que sim. Dentro do exercício do poder, deve haver uma consciência de contrapoder, se não o poder transforma-se numa coisa cinzenta. Sempre dei grande importância à liberdade pessoal, e a filiação num partido político não é incompatível com o exercício dessa liberdade. Um deputado responde perante a sua consciência e perante os que o elegeram. E tem algumas obrigações, evidentemente.

Alguns dos que apoiam a sua candidatura não estão conotados com a chamada "esquerda folclórica"?

Não sou da esquerda folclórica. Sou da esquerda responsável, aquela que teve um papel fundamental na condição da democracia. Sou é uma pessoa que não abdica da liberdade pessoal. Isso é útil à política. Admito que algumas pessoas me atribuam uma aura...

Romântica?

Românticos somos todos. Isso não é pecado. Se não aceitar ditaduras nem regimes totalitários, se lutar pela liberdade, se ter uma lógica independente e livre é ser romântico, então eu sou romântico. Era preciso que houvesse muito mais românticos em todas as sociedades.

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