O fenómeno do Entroncamento

Foram precisos dez anos e uma galinha para que Wallace e Gromit dessem o salto das inventivas curtas que fizeram o nome do animador britânico Nick Park para a longa-metragem. Dez anos porque, aos cinco de produção desta "Maldição do Coelhomem", devem-se somar os cinco de produção do irresistível "A Fuga das Galinhas", a longa que marcou a entrada de Park e dos estúdios britânicos Aardman no território do grande écrã, em competição directa com o "output" (então ainda) tradicional da Disney e de animação por computador da Pixar. Ao pé dos quais a plasticina animada em "stop motion" da produtora inglesa, de produção ainda mais lenta que a animação tradicional (ao ritmo de um segundo por dia), ganha contornos de suplício de Tântalo - apetece perguntar como é que depois, no grande écrã, aqueles minutos que levaram anos a rodar são tão vivos, criativos, inventivos, imparáveis.

Porque "A Maldição do Coelhomem" é um carrocel de ideias "non-stop" que traem o ambiente aparentemente pacato da Inglaterra rural idealizada que lhe serve de fundo e projecta um falso charme de artesanato obsolescente - Nick Park poderia ser uma "alma gémea" de Hayao Miyazaki, insistindo numa forma de animação que a tecnologia se arrisca a cantonar num nicho de "connoisseurs", mas vira-a sagazmente em seu favor com uma efervescência contagiante. Em apenas 84 minutos de projecção, o filme de Park e Steve Box compacta uma abundância de ingredientes necessários que andam a fazer muita falta à maior parte dos "blockbusters" formulaicos provenientes da linha de produção dos estúdios, ao mesmo tempo que se insere orgulhosamente na linhagem do cinema britânico dos anos 1940-1950 (a delirante história do "coelhomem" que aterroriza uma pacata aldeia britânica que se prepara para o grande concurso anual de legumes gigantes de Tottington Hall faz a ponte entre as comédias populares dos estúdios londrinos Ealing e os filmes de terror estilizados da Hammer) e lança um sem-número de piscadelas de olho inspiradas aos clássicos ("King Kong" é a mais evidente, mas está longe de ser a única).

Em rigor, se quisermos ser picuinhas, esta passagem à longa do inventor distraído e o seu cão não resolve cem por cento na perfeição a subida de estatuto - Park e a equipa da Aardman entenderam sempre "A Fuga das Galinhas" como "ensaio geral" para ver se a sua estética artesanal conseguia sobreviver à expansão para hora e meia de filme, mas o facto é que ali estávamos na presença de um argumento original escrito de raiz enquanto que as aventuras de Wallace e Gromit foram sempre pensadas em formato curto, com uma narração predominantemente visual e concentrada nos "tempos fortes". Daí que "A Maldição do Coelhomem" - onde o elenco de personagens é ampliado, pela primeira vez, para uma galeria de secundários com diálogo narrativo, vocalizado na versão original por Ralph Fiennes ou Helena Bonham Carter, e se constrói uma história de maior fôlego - dê por vezes a impressão de se arrastar.

Mas, em rigor, é mesmo só vontade de botar defeito, redimida pela gloriosa conjugação entre virtuosismo técnico, humor inglês (do Norte e do Sul, à escolha do freguês) e uma crença na capacidade do artesanato feito à mão conseguir fazer passar na íntegra todas as suas razões de existir. Não há por onde hesitar: a história do "fenómeno do Entroncamento" que é o temível Coelhomem (que só se pode matar com uma de três balas de ouro, que o dinheiro não chega para mais) é um prodígio imperdível.

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