Scorsese o homem que sonhava demais

Tempos houve em que o nome de Martin Scorsese era indiscutível no panteão da Hollywood da modernidade, cineasta da confissão e da dúvida sobre os limites do humano no confronto com o mundo circundante, o mais acutilante dos "movie brats".

Entre "Mean Streets (1973) e "A Última Tentação de Cristo" (1988), Scorsese refazia os caminhos da Paixão do indivíduo, em contextos muito diversos, que analisavam a especificidade de um complexo imaginário católico, aplicado a uma leitura da América e à revisitação dos géneros cinematográficos. "Taxi Driver" (1976) revisitava o "film noir" e a obsessão justiceira, como motor de uma paranóia moderna. "New York, New York" (1977) reformulava a hipótese do musical, integrado numa visão histórico do imediato pós-guerra. "Toiro Enraivecido" (1980) deslocava a paixão crística para o mundo do boxe e para uma estética a preto-e-branco, a lembrar imagens fortes de série B. "O Rei da Comédia" (1983) arriscava o irrisório de contrapor o seu actorfétiche, Robert De Niro, com a máscara burlesca de Jerry Lewis, de novo em retrato desmesurado da loucura e da obsessão. "A Cor do Dinheiro" (1986) pegava mesmo na dimensão da sequela, para integrar uma moderna noção do desassossego numa narrativa clássica investida de inovador "pastiche" pós-moderno.

"Tudo Bons Rapazes" (1990), desenvolvendo o seu aparato estilístico (o uso criterioso da câmara lenta ou o longo plano-sequência, em artificioso "travelling") e cristalizando um olhar fílmico reconhecível, aparecia como apogeu e como uma ruptura com a constante busca de soluções, que até aí constituía imagem de marca: em registo quaseperfeito, Scorsese começava a fazer Scorsese. Para muitos, começara um lento processo de "academização", que culminaria em "A Idade da Inocência" (1993), adaptação do romance de Edith Wharton, transferindo para o filme-de-época muitos dos grandes temas scorsesianos: a culpa e a expiação, a desajuste civilizacional ou o isolamento do indivíduo, prisioneiro de condicionalismos morais ou sociais. Depois desta aventura "literária", apenas "Casino" (1995) se incluía, em pleno, no universo do mestre americano, embora em tom de exercício formal, aperfeiçoando os seus próprios modos de ver e de dar a ver. No mesmo ano, iniciava, com o documentário sobre o cinema americano clássico, as suas viagens de síntese por um passado cinematográfico formativo, que viria a desdobrar-se em "Il Mio Viaggio in Itália" (1999), "ajustando contas" simultâneas com a matriz italo-americana e com a influência do cinema neo-realista, e pós neo-realista, na sua obra.

Dos filmes mais recentes, ficam pálidos fogachos do que se convencionou chamar o "grande Scorsese": "Kundun" (1997) possuía a estranheza de um exercício quase folclórico de compreensão do que escapava ao seu mundo representativo; "Bringing Out the Dead" (1999) explorava o "déjà vu", com grande destreza visual, mas sem quaisquer novidades; "Gangs de Nova Iorque" (2002) era um projecto de grande investimento pessoal, que esbarrava na impessoalidade de um "blockbuster" confuso e estridente.

Esta longa síntese torna-se indispensável para entender o interesse e os limites de "O Aviador", resultante de uma encomenda, a que Scorsese empresta a sua mestria visual e uma invulgar fluência narrativa. Antes do mais, todo o projecto repousa sobre o empenhamento de Leonardo DiCaprio em encarnar o multimilionário Howard Hughes, chegando a transformar-se fisicamente, com uma composição de um rigor quase maníaco: o actor dá a volta ao seu lado juvenil e carrega na nota da hipocondria. Na sequência em que se fecha a sete chaves numa sala de projecções, comunicando por detrás da porta, o actor roça a loucura, para se recompor depois e assumir a grandeza olímpica da personagem. Tudo na interpretação se efectua por picos, por excessos, por alterações de "mood", de modo a captar contradições e disfunções de personalidade.

A megalomania e a excentricidade da figura de Hughes, que DiCaprio acentua até à exaustão, cria ao projecto um problema quase insolúvel: afasta o filme do "biopic", o filme biográfico tradicional, concentrando-se num retrato interior, contrastante com a necessidade de retratar a Hollywood do período clássico. Ou seja, oscila-se entre a tentação de figurar Katharine Hepburn, Ava Gardner ou Errol Flynn e uma perigosa deslocação para uma "biografia íntima", uma concentracionária energia a fazer de Hughes gigantesca e desmesurada sombra. A sua fobia aos micróbios encaixa no scorsesiano medo inexplicável, curiosamente aproximando a personagem do protagonista de "Taxi Driver", numa alienação crescente e perturbante.

outros corpos, outras vozes.

No entanto, uma das mais apelativas intervenções de "O Aviador" no imaginário do espectador passa, precisamente, pela reconstituição da Hollywood dos anos 30 e 40, com a curiosidade de investir personalidades fortes de outros corpos e vozes: Cate Blanchett começa por falhar a sua Kate Hepburn, por exagerar o sotaque e a pose masculina, mas acaba por convencer, de tal maneira trabalha sobre as suas idiossincracias, a ela se devendo o ritmo imparável das sequências em que entra; Kate Beckinsale revela "star-quality", mas assume a tarefa impossível de "ser" Ava Gardner, sem imitar nem os tiques nem o seu inconfundível "look"; Jude Law mais não faz do que um reduzido "cameo", num Coconut Grove de filme e de mito.

A fragmentação dos episódios de vida, focando, por um lado, a proeza de fazer de "Hell''s Angels" um sucesso retumbante e um filme de culto e, por outro, discutindo a sua posição como impulsionador da aviação comercial, "alma mater" da TWA e encarnação do mito americano de quase superhomem, conferem ao filme uma narratividade errática, uma extensão excessiva, que dissolvem muita da espessura do homem por detrás da lenda. O Hughes de Scorsese perde em genialidade o que ganha em adequação histórica: o homem que surge no momento certo, investido de uma tenacidade e de uma teimosia capazes de ultrapassar um período complexo da História da América, depois dos trepidantes anos 20 do "crash" da bolsa e da Depressão.

O lado trágico da personagem acaba por moldar- se de forma subtil ao de Tony Carmonte de "Scarface", um dos títulos de glória de Hughes. E Scorsese parece ligar as oscilações do seu Império e as suas perplexidades às de outras "personae" do seu mundo - Cristo, Jake La Mota ou o Dalai Lama. Não obstante, uma das fragilidades de "O Aviador" está ligada ao facto de se fazer de Hughes um "outsider" e, em simultâneo, um herói do "mainstream", um "homem com asas", um visionário em busca de um sonho maior do que a sua própria grandeza individual.

O confronto com a personagem de Alan Alda (extraordinário de subtileza, num retrato algo estereotipado de vilão) levanta outras interessantes questões, uma vez que releva de uma reconhecível matriz melodramática, de referências de cinema feita. Há, portanto, uma tensão que o filme explora entre a reprodução de um verosímil conflito económico de interesses, no contexto da expansão capitalista da América, em período de recuperação, e a superação estética pelo engrandecimento do herói, digno das suas próprias (megalomaníacas) ficções. Só que a vontade de conciliar estas duas vertentes desequilibra o filme, alonga-o, tira-lhe eficácia: não é nem uma biografia, nem a cunhagem de um mito.

Por isso mesmo, Scorsese falha o seu "Citizen Kane", não dando a Hughes a complexidade requerida, que se perde nos intervalos da deambulação. "O Aviador" procura explicar Hughes, em vez de sobre ele escrever um enigma, investigando sobre a sua existência de facto, mesmo quando não delimita as coordenadas cronológicas em que se move. Em vez do artificioso "flashback", após a morte, vai seguindo uma acumulação de episódios, que mais não faz do que prolongar a acção, quando deveria propor uma estrutura mais fechada e codificada.

Ao "homem que sonhava demais" que Scorsese "inventou" para DiCaprio falta, assim, uma coerência incoerente, que correspondesse, em termos de narrativa, ao delírio visual controlado da primeira hora, com o realizador a mostrar como filma bem aviões e corpos, como domina a volúpia de um "travelling" ou a justeza de um "close-up".

O enigma Howard Hughes

Howard Hughes tem no imaginário Americano do século XX uma dimensão extraordinária e compósita: detentor de uma colossal fortuna herdada, conseguida com a exploração de petróleo no Texas, revela-se um visionário, quando procura bater os recordes de velocidade ou a construir aviões de guerra supersónicos, mas, também, quando transporta para o ecrã a grande saga da aviação no contexto da Guerra de 1914-1918, em "Hell''s Angels" (1930), responsável por uma voga temática, que se estenderá a obras-primas da década, de "A Patrulha da Alvorada" (1931) a "Only Angels Have Wings" (1939), ambos de Howard Hawks. Hoje, a importância do filme reside na perfeição das sequências aéreas, mas na época funcionou também como cadinho de experimentação para o uso do sonoro e para o desenvolvimento da cor (uma sequência decorativa em "technicolor"). Iniciava-se ainda uma das suas "especialidades", a descoberta de estrelas, com Jean Harlow, a loira platinada a emergir do filme para mais complexas aventuras, em registo de comédia de costumes. Foi o primeiro grande símbolo sexual lançado pelo multimilionário, a que seguiriam outros - Ava Gardner, ainda "starlette", Faith Domergue, adolescente para quem engendra "Vendetta" (1950) ou Jane Russell, que descobre para o segundo e último filme que assina como realizador, "A Terra dos Homens Perdidos" (1943), um "western" erótico através do qual afronta os códigos censórios, indignados pela exibição descarada dos atributos mamários da jovem Russell.

Entretanto produzira "Scarface" (1932) e "Sky Devils" (1932) e envolvera-se com Katharine Hepburn, uma diferente espécie de estrela, ligada à RKO, que Hughes virá a dominar, na sua estratégia complexa de abarcar numerosos empreendimentos, em que o cinema acabou por funcionar como dimensão mais visível. Nos anos 50, continuará a produzir veículos para Jane Russell ("Macao", "The French Line", "Underwater"), mas o período áureo passara, o que talvez explique que o filme Scorsese se detenha antes, no final dos anos 40.

Também se poderia falar da relação com Carole Lombard ou da sua propalada bissexualidade (ambas ausentes de "O Aviador"), mas o essencial centrase na sua vontade para se constituir como mito, como americano excêntrico, capaz de filmar uma sequência, usando 24 câmaras, ou de construir o maior avião do mundo.

A Hollywood de Howard Hughes é uma metrópole glamorosa, feita de sonhos e de quimeras, povoada de luxo e de excesso. Pela sua vida passaram as vedetas que o filme Scorsese mostra e muitas mais (casou com Jean Peters e Terry Moore, teve romances com Olivia de Havilland ou Bette Davis), envolveu-se em todo o tipo de escândalos, até que, em 1971, levou à prisão, por fraude, os autores da sua biografia dita autorizada. Tentou a todo o custo manter o mistério (até a sua morte se rodeou de mistério e bizarria), jogou com todas as contradições, fez de si próprio uma ficção viva. Foi dono de casinos e de estações de TV em Las Vegas, no final da vida todos os seus colaboradores eram Mormons, porque a religião os proibia de beber álcool, entrou na paranóia anti-comunista, um pouco como fugia dos micróbios das doenças.

A sua figura e lendária reclusão fizeram crescer inúmeros boatos e mitos, que Hughes sempre alimentou discretamente. No entanto, a criação maior da sua complexa multiplicidade era a de uma espécie de "centauro" de homem-aviador, de que a obsessão pelo cinema e pelo mundo do cinema não constituía mais do que uma extensão. E os seus infernais anjos com asas permanecem vivos em celulóide. Diz-se até que inúmeros filmes usaram, ao longo dos tempos, cenas de "Hell''s Angels", como se de metragem documental se tratasse. "Maior do que a natureza", Hughes foi personagem cifrada de um James Bond (o Willard Whyte de "Os Diamantes São Eternos") e permanece como enigma insolúvel, até depois de Scorsese e DiCaprio.

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