Sir Michael no quarto do Príncipe Cesariny

A primeira vez que o ouvimos em "Autografia", o documentário que sobre ele fez Miguel Gonçalves Mendes e que estreou esta semana no cinema King, em Lisboa, diz que "só havia três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta". A Cesariny aconteceu ser poeta,"um bom poeta numa época em que o tecto está muito baixo". E aconteceu-lhe "um elfo da floresta" vir bater-lhe à porta, que foi como Cesariny viu Miguel Gonçalves Mendes, e pedir-lhe que o deixasse filmar. O filme que daí resultou, "Autografia", é uma volta ao mundo de Mário Cesariny. Dar a volta ao mundo, como explica o poeta no filme, equivale, numa certa gíria de marinheiros, à rotação completa de um barco sobre si mesmo. "Dei a volta ao mundo, porque o mundo sou eu."

"Sir Michael" tem hoje 26 anos, mais uns quatro anos desde que começou a filmar Cesariny. "A primeira vez que entro em contacto com a poesia e a obra do Mário estava no ISCSP [Instituto Superior das Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa], no grupo de teatro. Fizemos um espectáculo de homenagem ao Mário Cesariny com poemas dele, era uma série de textos e poemas encenados pelo João Cabral." Era na altura em que Miguel achou que podia ser actor. "Todas as noites eu ouvia o poema 'Autografia' e todas as noites achava que tinha de saber quem é que escrevera aquilo e porque é que o escrevera e para quem é que ele estava 'em franca ascensão' aos 'vinte e cinco anos de existência solar'..."

É com esses versos que abre o filme, foi por esse poema do livro "Pena Capital", "o mais biográfico e premonitório em relação à vida dele", que Miguel Gonçalves Mendes se guiou. "Não queria, de todo, fazer uma coisa pedagógica, que explanasse a história da pintura ou da poesia do Mário. Porque acho que há pessoas mais competentes do que eu para o fazer. Os historiadores de arte podem pegar nos quadros todos dele e fazer a análise que quiserem, e os ensaístas o mesmo em relação à poesia... Interessava-me mais um registo pessoal dele - como é que ele funcionava em relação à vida, em relação mundo, como é que ele sente as coisas. E acho que também foi isso que o fez aceitar este documentário. Ele perguntou: 'O quê, vais-me perguntar o que é o surrealismo?' E eu disse-lhe: 'Não, não quero saber de nada disso. Só quero saber o que é que o Mário é.' E ele, aí, aceitou."

Convenhamos: pedir a um homem que se revele é pedir muito. E Cesariny pôs-se a nu, literalmente. A câmara filma-o rente à pele, sem pudor, um corpo com idade, suado. Há momentos em que a câmara está tão perto que até Cesariny se espanta, rindo como um garoto: "Iiiiii!"

É um filme em três actos - e um epílogo - porque Cesariny faz o seu teatro. O teatro de um surrealista. É preciso vê-lo, num cemitério de barcos na Margem Sul, de chapéu com uma pinha, a vociferar, para um telefone sem fios, "Puta que os pariu!"A lançar um gesto obsceno para a fama, a trepar a uma escada de ferro, acima das árvores, com a desenvoltura de um gato. "O Mário chegou lá, saiu do carro e desatou a correr em direcção às escadas, que não estavam presas em lado nenhum, estavam presas na areia, e nós: 'Ó Mário, sai daí, sai daí...'. E ele: 'Não, não, só saio daqui quando me filmarem'", conta Miguel Gonçalves Mendes.

Tem medo da morte, Mário Cesariny, o surrealista? "Sou capaz de ter um bocadinho", diz no filme. "Gostava de ter uma daquelas mortes boas. A gente deita-se a dormir e nunca mais acorda. Mas tenho muito medo da degradação física."

acertar no alvo.

"Mas também deve ser muito chato ser um daqueles velhos cheios de saúde, não é?", diz-nos Mário Cesariny, numa tarde cinzenta, na véspera da inauguração da primeira exposição retrospectiva da sua pintura, no Pavilhão Preto do Museu da Cidade, em Lisboa. Estamos no quarto que já foi o quarto de dormir de Cesariny e que agora é o seu atelier - que é o lugar onde a câmara de Miguel Gonçalves Mendes mais esteve durante os três anos que filmou Cesariny. O cavalete repousa sem tela, mas ele ainda pinta. Há paredes que agora estão vazias porque os quadros estão na exposição. Cesariny faz Miguel prometer que lhe afixa um cartaz do filme com pionés, algures. "Foi para mim uma surpresa inesperada existir um jovem como o Miguel. Conheci o Miguel, fiquei miguelista." "Autografia" é um filme de quem? "É um filme do Miguel, comigo lá dentro. Por dentro e por fora, por todos os lados... É uma obra que não sei se se pode dizer perfeita, porque eu ainda fiz umas caretas, umas coisas esquisitas que ele soube muito bem tirar, mas ficou o essencial. Nunca me tinha visto tão bem retratado. Aliás, não tenho termo de comparação com outro filme..." A não ser um pequeno filme de Carlos Calvet, de 1964, uma ficção surrealista com Cesariny e João Rodrigues, intitulada "Momentos na Vida de Um Poeta", um objecto raro que vai ser exibido em complemento a "Autografia", no King.

Sobre "Autografia", Cesariny diz que "acerta no alvo". Ainda considera, como afirma no filme, que se expôs demais? "Eu acho que me expus pouco. Expus-me demais mas esse demais era pouco. Ainda havia mais camisas e camisolas para abrir. Mas o que ficou no filme não é demais nem de menos." Depois, há-de dizer: "É difícil falar de um filme. Ou então, é difícil falar..." Miguel diz-lhe que alguém o definiu como um "poeta-oráculo", depois de ter visto o filme. "Como é que é? Ai, isso é bonito."

Em "Autografia", o poeta-oráculo fala sobre o amor (e o amor, em Cesariny, foi homossexual), a vida, a ditadura salazarista, a Lisboa dos cafés Royal e Gelo, que desapareceu, o país. "Estamos num país em que não se pode dizer o que realmente interessa. É assim desde D. Afonso Henriques." Trombetas na Versalhes, que é o que sobra dos cafés de outras eras: Cesariny discorre sobre a "revolução surrealista" na casa-de-banho da pastelaria. Sobre a poesia, dirá que "foi um fogo muito grande que ardeu... ficaram as cinzas". E dirá isto: "Eu há muito tempo, talvez, que não estou cá."

projecto de teimosia.

À imagem do seu protagonista, "Autografia" é uma obra selvagem, como alguém, certeiramente, a definiu. No sentido de que é um filme livre, a condensação de uma natureza, mais do que uma condensação biográfica ou de obra, que é o que se espera, por regra, de um retrato. No sentido, também, de que é uma obra pouco polida, tecnicamente frágil, até. É o projecto de uma teimosia, como parecem ser todos os que Miguel Gonçalves Mendes mete na cabeça. Começou por ser um exercício para a Escola Superior de Cinema, um retrato de oito minutos, mas quando o projecto falhou, Miguel não desistiu. Filmou sem dinheiro, primeiro com câmaras emprestadas, depois com câmara própria, graças a um empréstimo bancário.

Antes de "Autografia", já fizera um documentário, o primeiro de uma trilogia sobre a Galiza nunca concluída, "D. Nieves" (2002), que, bem vistas as coisas, não anda longe das temáticas do seu filme sobre Cesariny. Ele concorda. "O registo era próximo deste ['Autografia']. Ou a procura era a mesma. São questões que eu quero ver resolvidas. [Como uma] terapia...", ri-se. Coisas de determinismo (português), de um país de brumas, de saudade. "Acho que é mesmo o nosso problema genético, que nos caracteriza mesmo, esta coisa da saudade. Se se olhar para o mapa da Península Ibérica, faz sentido que isto seja um país só, e o que eu acho interessante explorar é o que de facto nos determinou, o que é que fez com que este povo, que é uma caganita aqui metida, conseguisse aguentar 900 anos com um monstro ao lado, gigante e possante, que é a Espanha, sem os tipos nos comerem. E sempre nos tentaram comer... E nós também sempre tivemos um pezinho lá. E, de facto, somos diferentes. E temos uma nostalgia e um olhar para o passado que é estranhíssimo. Só podemos ser assim porque não nos podemos virar para o lado, só nos podíamos virar mesmo para o mar, que é a coisa mais aberta e mais indefenida que há no mundo."

Miguel Gonçalves Mendes começou a filmar Cesariny quando andava no primeiro ano da Escola Superior de Cinema, já depois de ter tentado Arqueologia e Relações Internacionais, já depois de ter ido a Madrid fazer audições para o Conservatório de teatro. Foi actor, foi produtor executivo da companhia Cão Solteiro, actualmente é finalista da Escola Superior de Cinema. Trabalha agora na montagem do seu primeiro filme de ficção, "A Batalha dos Três Reis", projecto iniciado no mesmo ano que "Autografia" e que espera estrear em Março. Com argumento do realizador, é um filme "sobre a impossibilidade de se lutar contra o destino": um casal parte para Marrocos, numa "viagem-suicida", que tem o seu quê de "paralelismo com D. Sebastião". As interpretações são de João Cabral, Rita Loureiro e Paulo Pinto, a banda sonora é assinada por Rodrigo Leão. Deixou de fazer teatro "porque sabia que nunca seria um bom actor" e, no entanto, abrirá uma excepção para "Alice in Bed", texto de Susan Sontag que o fará regressar aos palcos, no próximo ano, numa encenação de Rafaela Santos.

"Autografia" valeu-lhe o prémio de melhor documentário português no recente DocLisboa. Em tempos, chegou a considerar fazer um "Autografia 2", mas abdicou em favor de um livro, editado agora pela Assírio & Alvim, em simultâneo com o filme. "Verso de Autografia" reúne grande parte das entrevistas que ficaram de fora do documentário, acompanhadas de fotografias de Susana Paiva. "Porque é que eu havia de ficar com mais 20 horas de conversa com o Cesariny e não dar a ninguém?"

Outro dos seus projectos é filmar um argumento de Cesariny, escrito nos anos 60, "Norma de Bellini", a preto e branco. "Acaba por ser sobre o próprio Mário, e as suas deambulações por Lisboa..."

Isto é Cesariny, falando sobre Miguel: "Ele é um bocado mágico. Inventou um helicóptero para me ver ali à janela..." Há um voo sobre Lisboa no final de "Autografia", porque Cesariny tem "saudades de voar". A câmara plana, rasante, entre o Tejo e os Restauradores, antes de se deter à janela onde está um homem, Mário Cesariny. "Achei que gostava de lhe dar essa prenda, de lhe dar essa possilibidade de voar", diz o realizador. "Saiu bem...", conclui Cesariny.

Sugerir correcção
Comentar