Sonhos de chumbo

Bellocchio não partiu, no entanto, de uma base "jornalística" ou (apenas) factual: o argumento do seu filme é adaptado do relato de Anna Laura Braghetti, uma das intervenientes na operação, que a viveu, e depois a descreveu, como um processo pessoal de tomada de consciência rumo ao "arrependimento". Temos, assim, que "Bom Dia, Noite" conta, na verdade, duas histórias: a da reconstituição, mais ou menos romanceada (Bellocchio, em entrevistas, insistiu na questão da "ficção" e da "infidelidade" na adaptação do livro de Braghetti), dos acontecimentos em torno do rapto de Moro, e a do percurso interior da personagem correspondente a Braghetti, que no filme se chama Chiara. Sendo esta segunda história, no fim de contas, um julgamento político e moral sobre a primeira, é nela que o realizador se apoia para poder narrar os factos a partir de um ponto de vista aparentemente frio, algo cru, e que faz o possível para ser "neutro". Pelo menos até certo ponto: um dos aspectos mais discutíveis do filme (e mais discutidos, sobretudo em Itália) é a sua descolagem final para uma atmosfera de "sonho", com Aldo Moro (cuja execução nos é elidida) caminhando pela rua como se tivesse sido, afinal, libertado em vez de morto.

É um final ambíguo, certamente, que permite todas as leituras, mesmo as mais contraditórias - e é um facto que "Bom Dia, Noite" foi, em Itália, politicamente criticado tanto à direita como à esquerda. Esses planos, no fim, podem corresponder a um sonho de "arrependido", ou podem servir para assinalar o papel fulcral que Moro, involuntariamente, acabou por ter na caducidade das Brigadas Vermelhas. Mas, de qualquer modo, é um sonho que se confronta com "realidade" e com a História, através da inclusão de imagens televisivas do funeral de Moro: o homem morreu mesmo, isto passou-se mesmo, quanto a isso nenhuma ambiguidade é possível. Como não há ambiguidade na elipse da execução de Moro, substituída por um intertítulo com o título do filme, um "bom dia, noite" (repescado dum verso de Emily Dickinson) que não podia ser mais explícito. Quanto a ambiguidade, ficamos conversados.

As imagens documentais do funeral que aparecem no fim são precedidas, ao longo de todo o filme, por outros excertos televisivos da época que vão servindo de comentário e contexto. Desfilam pedaços de noticiários e entrevistas com figuras da vida política italiana, num efeito de evocação realista que tem, intencionalmente ou não, o condão de mostrar que, face ao terrorismo, o poder político (ou a política "institucional"), há 26 anos como hoje, é, ao nível do discurso, completamente impotente. Da impotência ao nível da acção o filme fala levemente, sobretudo através das reacções de Moro ao que lhe contam das reacções do "mundo político" que ficou lá fora. Aliás, das várias teorias da conspiração desde sempre associadas ao assassinato de Moro (do papel da CIA à pista maçónica da loja P2) a única evocada, também levemente, é a da hipótese de, por omissão, Aldo Moro ter sido "oferecido" em sacrifício para capitalização política da consternação provocada pela sua morte.

Mas isto, a reconstituição dos factos, muito, pouco ou nada ficcionada, é o que o filme de Bellocchio tem de mais interessante. Noutros aspectos mais dramatúrgicos, por assim dizer, parece falhar. No recorte dos membros da célula, por exemplo: percebe-se a vontade de não sobre-caracterizar as personagens, possível maneira de não incorrer no maniqueísmo, mas o que fica é um conjunto de silhuetas que não chega a ser explorado até ao fim naquilo que tem de mais sinistro: o facto de não só já não reconhecerem o "indivíduo" (como explicam a Moro, não é o "indivíduo" que vão executar, mas o "representante da Democracia Cristã") como terem deixado eles próprios de serem indivíduos, para serem apenas veículos de um discurso dogmático e pré-fabricado que os atravessou e os desumanizou. Mas se isto só se vê no filme a breves espaços, é provavelmente uma das razões por que a "tomada de consciência" da protagonista nos parece tão frágil e, permanecendo na ordem da revelação e da epifania (a sobreposição entre a carta de despedida de Moro e a carta de despedida de um partisan antes do fuzilamento, décadas atrás), tão digna de um conto de fadas. Certo: a personagem é uma ingénua (o que aparentemente se sublinha nos diversos momentos em que se montam imagens com "ícones" tão diversos como Estaline ou o "Paisá" de Roberto Rossellini), e a sua descoberta de onde de facto está e consequente conversão provavelmente teriam que o ser também. Mas precisamente por isso, há nelas (na personagem e na ingenuidade) uma dimensão assustadora que o filme acaba por apagar em nome de um desejo de romantismo que, neste contexto, parece totalmente deslocado e contraditório.

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