Mas Sam Raimi espreita por trás dessa máscara...
Antes de aí chegar... é o Homem-Aranha que tira a máscara em "Homem-Aranha 2". E faz sentido que o realizador veja o filme menos como uma "sequela" do que como uma "continuação", porque há aqui um "work in progress": depois de no passado (o filme anterior) ter julgado que aguentava com o peso do mundo, porque essa era a época da inocência, Peter Parker agora tem dúvidas. Este é, enfim, o momento em que - muito por culpa de um vilão tentacular que se apresenta a serviço: Doctor Octupus, aka. Doc Ock, ou o actor Alfred Molina com tentáculos nas suas costas - é servida a angústia existencial ao super-herói. O fato coleante rasga-se para dar a ver o rosto em agonia. O herói da teia descobre-se, afinal, homem sem rede. Depois do canto "lo fi" (algo prejudicado pela ginástica acrobática tecnólógica e pelo artificialismo dos efeitos especiais...) de "Homem-Aranha", que era sobretudo uma história de amor (Tobey Maguire e Kirsten Dunst) e uma história sobre as agruras da sexualidade adolescente com fundo de América mediana, começa a cumprir-se aquilo que desde os seus 13 anos, desde que começou a fazer curtas-metragens, é a "ética" assumida dos filmes de Raimi: "Os inocentes devem sofrer, os culpados devem ser castigados e todos devemos provar o sabor do sangue para sermos homens".
"É um filme sobre uma vida em desequilíbrio. Peter [Parker] tem estado tão ocupado a negar a sua vida pessoal que não amadureceu. No fim do filme anterior ele tentava suportar o mundo nas costas. Mas agora não aguenta o peso", disse Raimi numa entrevista, explicitando o programa de "Homem-Aranha 2".
Há um pacto de fidelidade, se quisermos, de Raimi com os (anti-)heróis que filma, e esse pacto, que como todos os pactos tem potencialidades diabólicas, é intrínseco ao seu cinema. Mesmo nos tempos em que (re)criou praticamente um sub-género dentro do horror, o "comedic horror", a mistura de grotesco com uma câmara de filmar investida de devaneios operáticos, improváveis pontos de vista e instintos surrealistas - "The Evil Dead" (1982), "Evil Dead II" (1987), "Army of Darkness" (1993) ou a obra-prima "Darkman" (1990) - não podiam ser reduzidos a tiques de pós-modernismo, porque Raimi é, fundamentalmente, um romântico. Esse romantismo fá-lo partilhar o destino das personagens, deixa que seja ele a comandar o filme, como amplificação de uma tortura interior, como um vírus que alastra e ocupa os sentidos e distorce os pontos de vista.
O lirismo transbordava em "Homem-Aranha" - o desvario explodia em "flashes" (aquele beijo invertido, um dos momentos mais sensuais do cinema americano recente...) - e escorria sobre as fórmulas, que as há, de tentar o "blockbuster". Aí Sam Raimi espreitava por trás da máscara.
Em "Homem-Aranha 2", onde as cambalhotas nos céus de Manhattan fazem menos figura de exibição digital do que eco do turbilhão das personagens (há mesmo uma grande cena de acção: Homem-Aranha vs. Doc Ock no tejadilho do metro em alta velocidade), mas onde estão visíveis as artimanhas de segundo-filme-de-série-a-preparar-o-terceiro (a personagem de James Franco, que jurou matar o Homem-Aranha, depois da morte do pai, Willem Dafoe/Green Goblin, no capítulo anterior, é o elo mais fraco ou a personagem que mais se trai como instrumento industrial - da máquina de fazer "blockbusters", claro), Sam Raimi está de novo à espreita. Agora, entre as torres de Manhattan.
Mais do que no filme anterior, "Homem-Aranha 2" é o filme de uma cidade, Nova Iorque. Mas de uma cidade que é um espaço de atordoamentos, um espaço escorregadio: cheio de sinais de real e ao mesmo tempo sempre transfigurado (veja-se a tal cena do metro, cinco desenfreados minutos que precisaram de meses e meses de planeamento e filmagem: em Manhattan, com excepção de um pequeno percurso, não há linhas de metro que atravessem exteriormente a cidade, por isso o que vemos é uma sobreposição de uma imagem de Nova Iorque com a realidade de... Chicago). Esse deslize, que no fundo serve de câmara de eco à perturbação das personagens, é um exemplo eloquente do "ramiesque touch": ao contrário do cinema de Tim Burton, por exemplo (apesar de em outros aspectos Raimi não conseguir evitar os caminhos percorridos pelo realizador de "Batman Returns"), o inferno não está no "lado de lá", está entre dois mundos, num trânsito de ecos e de miragens.
Raimi espreita, ainda, no cerco que começa a apertar sobre Peter Parker - mas, como se disse antes, não fica de fora a ver, deixa que a operação de atrocidades violente o seu cinema. "Vou torturá-lo [a Peter Parker, num próximo capítulo da série]. Conheço as suas fraquezas e sei como as explorar. Gosto verdadeiramente de vê-lo sofrer. E penso que os espectadores e leitores também. Têm um lado sombrio: gostam de ver sofrer os seus heróis nos filmes e na BD. É doentio, pensando nisso". Vai haver um terceiro Homem-Aranha. É legítimo começar a sonhar com algo do calibre de "Darkman", variação do tema de "O Fantasma da Ópera" em que Raimi levou o calvário da exclusão de uma personagem até à sua anulação final, quando a personagem se tornava uma abstracção? Isso seria pedir demais, mas "Darkman" espreita por aqui...
E é assim que um cineasta de culto "artesanal" se vai equilibrando, com as suas afinidades electivas, nas teias do "blockbuster". "Homem-Aranha", o seu primeiro sucesso comercial, mudou alguma coisa, perguntou-lhe a revista francesa Ciné Live? "Não, nada de importrante. A não ser o facto de os estúdios me proporem mais argumentos, filmes grandes que antes não me ofereceriam. Isso é muito significativo para alguém nesta profissão, porque muito poucos realizadores têm a oportunidade de realizar 'blockbusters'. Nunca pensei que entraria alguma vez num círculo tão fechado como esse. Mas sei que não vai durar, os sucessos são sempre efémeros".
Com "Homem-Aranha 2" Sam Raimi teve pela primeira vez uma data de estreia marcada sem ter sequer um argumento escrito - é uma das regras do "blockbuster". Mas não foi a última: a 30 de Junho de 2007, já está o dia marcado, vai estrear-se "Homem-Aranha 3".