A herança de Kurt Cobain, uma década depois
Olhando para os "tops" de vendas ou para as rádios americanas, essa "herança" não parece muito visível. Os artistas mais populares nos EUA vêm ou do hip hop (Outkast, Jay-Z, Eminem) ou da pop-pastilha-elástica (Britney Spears, Justin Timberlake).
Muitas rádios de "rock clássico" continuam a passar as canções dos Nirvana, mas misturadas com os êxitos de bandas como os Aerosmith ou os Guns n'Roses, com um espírito muito distante da música de Cobain.
A revista "Rolling Stone" publicou, na sua última edição, uma lista dos "50 Imortais" da história do rock; lá estavam os Nirvana, ao lado dos U2 e de Prince. Mas esse seria o tipo de homenagem que Cobain, que teve uma relação difícil com a sua celebridade e com a indústria musical, não apreciaria.
Bandas contemporâneas, como os Weezer, os White Stripes ou até os Radiohead, devem parte do seu som e da sua atitude aos Nirvana; é garantido que não seriam tão ouvidas e respeitadas se "Nevermind" não tivesse aberto as portas da indústria, em 1993, a um rock mais agressivo e existencialista. Mas descrevê-las como descendentes dos Nirvana é tão simplista como colocar Cobain num ramo de uma árvore genealógica construída pelos Pixies ou pelos Black Flag.
E, no entanto, é inevitável concluir que Cobain deixou uma marca profunda na cultura popular americana. A revista "Newsweek", que raramente dá a sua capa a estrelas do rock, fez primeira página, no ano passado, com a publicação dos seus diários.
Continuam a sair biografias e tratados sobre a vida e obra de Cobain, como "Come as You Are", de Michael Azerrad, e "Heavier than Heaven", de Charles Cross. E a edição recente de uma música inédita, "You Know You're Right", despertou mais atenção do que qualquer novo trabalho contemporâneo.
Além disso, a imprensa continua a seguir avidamente qualquer nova história ligada aos Nirvana - na semana passada, a revista britânica "Uncut" publicou a versão integral de uma entrevista a uma televisão francesa em 1993, em que Cobain falava da possibilidade de abandonar os Nirvana para se juntar à banda da mulher, Hole. E, por falar na mulher, Courtney Love: as suas peripécias continuam a ser seguidas com o misto de fascínio e desprezo devotado pelos fãs à outra grande "Lady Macbeth" do rock, Yoko Ono.
O rapaz tímido tornou-se um herói trágicoUm pouco de história: Kurt Donald Cobain nasceu na pequena cidade de Aberdeen, no Noroeste dos EUA. Era um rapaz tímido. Na adolescência, mudou-se para a Seattle, onde formou a banda Fecal Matter com o baixista Krist Novoselic.
Já sob o nome Nirvana, gravou "Bleach". O custo da gravação entrou para a mitologia do rock - 600 dólares. A indústria musical entretanto descobriu a "cena de Seattle", e começou a contratar bandas por atacado. Os Nirvana editaram o seu segundo disco, "Nevermind" (1991), por uma "major". Queriam vender cem mil cópias; venderam mais de dez milhões, e em Janeiro de 1992 destronaram Michael Jackson do "top" americano.
Os Nirvana tornaram-se no símbolo do "som de Seattle". Depois de anos em que o rock significava a música decadente e plastificada das "hair bands", uma geração pôs-se a ouvir um rock diferente do dos anos 80, dominado por Phil Collins, Whitesnake ou Def Leppard.
Perturbado mas também hipnotizado pelo êxito, Cobain não aguentou a pressão. Sofria de uma misteriosa e nunca explicada doença no estômago. Ainda antes de editar "Nevermind", já era viciado em heroína, tinha tendências suicidas, discutia com a mulher e com os outros membros da banda.
Pouco depois de lançar o álbum "In Utero", os Nirvana fizeram uma digressão pela Europa, que começou em Cascais, em Fevereiro de 1994. No mês seguinte, Cobain teve uma "overdose" em Roma. Entrou num hospital de desintoxicação, desapareceu, foi encontrado a 8 de Abril por um electricista na sua casa de Seattle, três dias depois de se ter suicidado com um tiro de espingarda. Tinha 27 anos.
A morte trágica e violenta de Cobain teve certamente um efeito importante na sua "herança". O valor "místico" de um desaparecimento abrupto é parte do que faz John Lennon ser mais amado que Paul McCartney; Jim Morrison mais que Arthur Lee; Jimi Hendrix mais que Keith Richards. Quando Cobain morreu, houve vigílias em Seattle e outras cidades americanas; adolescentes vestiram-se de luto; jovens em vários pontos do Mundo imitaram o seu suicidio...
E hoje? Se parte da mitologia criada em volta de Cobain é parecida com a de outros ícones da cultura pop, como Elvis, as consequências musicais dos Nirvana são mais difíceis de avaliar. Eles abriram as portas a uma série de bandas rock com um estilo sério e articulado; mas esses grupos viram a sua audiência reduzida a um núcleo de fãs dedicados (Pearl Jam), dissolveram-se (Soundgarden) ou seguiram o mesmo caminho dos Nirvana (Alice in Chains, cujo vocalista, Layne Staley, foi encontrado morto no seu apartamento há alguns meses).
O fenómeno musical mais duradouro dos anos 90 nos EUA acabou por ser o rap; e as "boy bands" e os grupos rock plastificados que os Nirvana baniram das ondas radiofónicas regressaram em grande aos "tops".
Dificilmente aparecerá um novo Kurt Cobain. Mas, é claro, a música permanece, sobretudo para a geração que aprendeu a gostar de rock com os Nirvana. E Cobain entrou em vários panteões, seja o dos "imortais" da Rolling Stone ou o dos artistas que morreram aos 27 anos. É o último herói trágico do rock.
Discografia dos Nirvana"Bleach", 1989
"Nevermind", 1991
"Incesticide", 1992
"In Utero", 1993
"MTV Unplugged in New York", 1994
"From the Muddy Banks ot the Wishkah", 1996*
"Nirvana", 2002*
* editados após a morte de Kurt Cobain