Andrew Jarecki preparava-se para focar a sua câmara sobre Billy Pateta quando, na sequência de vários encontros, notou nele (foi assim que caracterizou) uma profunda reserva de raiva (é isso o que se diz dos palhaços: têm uma cara diferente por baixo da outra).
Jarecki questionou-o, Billy Pateta começou por ser evasivo, mas ia dando pistas, até que um dia tirou o disfarce, e nesse momento apareceu David Friedman, que contou a sua história familiar. Fez mais do que isso: mostrou um baú cheio de filmes em Super 8 e cassetes de vídeo. Andrew Jarecki esqueceu os palhaços, e encontrou aí novo filme, a que chamou "Os Friedman".
São Arnold (o pai), Elaine (a mãe), David, Seth e Jesse (os filhos), protagonistas (alguns apenas têm papel secundário) desta tragédia americana, um dos casos criminais mais perturbantes da América. Nos anos 80, estava a família à mesa a celebrar o Dia de Acção de Graças - isto passou-se em Great Neck, vistoso subúrbio de Long Island, Nova Iorque - quando a polícia lhes entrou em casa para prender o pai Arnold e um dos filhos, Jesse, o mais novo. Eram acusados de violação e abusos sexuais de 17 jovens, alunos de Arnold. Respeitado professor de Ciências, que dava aulas de piano e explicações de computadores (começava o "boom" da informática), Arnold já vira as autoridades entrarem-lhe casa adentro para apreenderem revistas de pornografia infantil, semanas antes. Mas foi no Dia de Acção de Graças que as forças da tragédia começaram a ser convocadas. Nem aí os Friedman deixaram de filmar.
É que os Friedman (primeiro Arnold, depois David) eram uma daquelas famílias obcecadas pelos "home movies", como se aí (a fazerem cinema?) encontrassem a validação de um papel. Arnold, através do Super 8, registara a infância dos três filhos, a coesão tribal entre eles, os homens da família (era o melhor dos tempos, embora desse para ver a solidão de Elaine, esposa e mãe). Com a iminente prisão do pai e do irmão, David passou a fazer, através do vídeo, o registo da queda, longas jornadas pela noite de flagelações, acusações, culpa, mas também de reforço das cumplicidades masculinas - esposa e mãe votada ao ostracismo. Uma espécie de dança macabra acelerava-se num diário filmado, as personagens tornavam-se espectros. O circo mediático das televisões e dos jornais, a histeria que o crime da "pedofilia" provocou na comunidade de Great Neck, cercou os Friedman, e eles encerraram-se nos seus domínios, construindo, com a velocidade do desespero, o seu próprio programa de imagens, que tem tanto de bravura "shakespeareana", com golpes de teatro e acusações sanguíneas de traição, como da insustentável leveza do "reality show" que revele intimidades de alcova - é que as imagens, ao mostrarem um tecido familiar a ser rasgado, têm em si, e isso está nos rostos e atitudes dos protagonistas, a euforia celebratória, ingenuidade até, de quem filma e é filmado, o que acentua mais a tragicomédia desta devastação humana.
Estes "home movies" são o núcleo principal do documentário: a queda da casa Friedman, filmada pelos próprios. Depois, Jarecki vai ao encontro de quem sobreviveu, para contar o que realmente aconteceu. Ouve David, ouve Jesse (que cumpriu uma pena de 13 anos, saiu da prisão em 2001 mas é considerado "predador sexual violento" e está permanentemente sob vigilância, com monitor electrónico preso ao tornozelo), ouve Elaine. Não ouve Seth, um dos irmãos, porque este se recusou a falar, e não ouve Arnold, porque o pai Friedman se suicidou na prisão, em 1995. Os rostos dos que agora testemunham trazem marcas, mas "Os Friedman" não quer fluir ao correr do tempo. Situa-se, antes, numa dimensão sem espaço nem tempo, a do espectáculo, a da montagem de depoimentos (o habitual formato "talking heads", "cabeças falantes") com imagens, a da justaposição de contradições. Entre isso, aquilo a que chamamos "verdade" esboroa-se.
O que é que aconteceu depois do dia de Acção de Graças? Arnold e Jesse foram acusados, embora não tenham aparecido nunca provas materiais (sangue, sémen) das supostas violações e os depoimentos de testemunhas tenham sido obtidos em condições que hoje, segundo a prática judicial, seriam consideradas manifestamente insuficientes ou em condições de excesso de zelo.
Arnold, que era pedófilo, inicialmente manteve a sua inocência em relação aos actos de que era acusado (alguém diz: "Ele só gostava de ver as revistas, mais nada"), mas foi aconselhado a assumir-se como culpado para beneficiar da confissão. O mesmo fez Jesse, por conselho do advogado (é o que ele diz; o advogado nega, e fala mesmo numa confissão e na revelação, que Jesse lhe terá feito, de ter sido violado em criança pelo pai).
A depressão arrastou Arnold para o suicídio na prisão (Elaine entretanto pedira o divórcio), Jesse cumpriu pena, é hoje estigmatizado e mantém a sua inocência.
Quem diz a verdade? Nunca vamos saber. Mesmo tendo estado tão perto deles, com os "home movies". "Verdade" é aqui uma quimera anacrónica, porque aqui tudo está pronto a ser reconfigurado para o seu oposto. Como no universo em expansão da realidade virtual. Às vezes sente-se que o filme habitará um limbo de facilidade, como se a "impossibilidade da verdade" fosse uma desculpa para a falta de rigor exaustivo e de mais informação - o que tem de existir num objecto de investigação ou que se permita rever um caso. Escapa ao filme também a dimensão demiúrgica do trabalho de um cineasta como Errol Morris, cujo "The Thin Blue Line", investigação/recriação de um caso judiciário americano, continua a ser objecto de referência (tanto que até levou a reabertura, anos depois, do caso sobre o qual se debruçou). Mas como os "home movies" da família de Long Neck, "Os Friedman", nesta mistura de tragédia brutal (a história) e de ligeireza (o formato básico do filme), nessa espécie de agitação celebratória que nele circula, é revelador de uma obsessão americana com as imagens, essa forma, muito pragmática, de as tratar por "tu", de fazer delas uma segunda natureza ...
E a história do palhaço Silly Billy? Andrew Jarecki promete imagens desse filme que nunca vai ser feito na edição especial em DVD de "Os Friedman".