O crepúsculo do sedutor

Roger Dodger é um predador de Manhattan (basta dizer "O Sexo e a Cidade" e tem-se uma ideia das novas regras da atracção...). Publicitário - publicitário não é aquele que brinca com o desejo dos outros? -, tem uma capacidade infinita para teorizar a partir de estatísticas. Oiçam-no falar do esperma como fluido em vias de extinção... Para resumir: é autoconfiante, misógino, obsceno. É o homem que as mulheres odeiam. E é inteligente. E é desesperado (o retrato é bastante complexo).

Esta magnífica comédia de Dylan Kidd, "Roger Dodger", tem afinal no centro uma personagem trágica. O predador sabe de antemão - no zénite da lucidez é possível ver-se o crepúsculo - que é perdedor. Espécimen em vias de extinção. Que ao esbracejar (que ao falar, porque este é um dos filmes mais tagarelas dos últimos tempos) só esconde dos outros aquilo que guarda para si: a consciência do fim.

De onde vem este Roger? "Vem desta cidade, mas não é ninguém em especial", responde o realizador, Dylan Kidd, ao telefone de Nova Iorque. "Hoje, nas cidades, há muitas pessoas separadas das suas emoções. Roger é um excelente publicitário, veste bem, mas emocionalmente é uma criança. Sempre vivi em cidades. Há muitas pessoas assim, que deixaram que as respectivas carreiras tomassem conta das suas vidas."

Na verdade, num "coffee shop" de Manhattan, Dylan Kidd encontrou o seu Roger: Campbell Scott, intérprete (e assim também um actor encontrou o papel da sua vida). Tudo aconteceu como nos filmes que se passam em Nova Iorque. "Foi uma coincidência, uma coisa mágica", conta o realizador. "Nunca o tinha encontrado, embora ele estivesse na lista de actores em quem tínhamos pensado. Entrou num café, eu estava com o argumento na mão, levantei-me, dei-lho e ele prometeu que me telefonaria daí a duas semanas. Não acreditei. Telefonou. E tornou-se produtor executivo do filme. Porque é que eu tinha pensado em Campbell Scott? Porque se há actores, no cinema americano, cuja presença num filme indica logo como é que esse filme vai acabar e que tipo de filme é, outros não. Queria um actor desses. E Campbell trouxe uma nova realidade à personagem. Eu tinha-a imaginado mais hiperactiva e Campbell até fez da verborreia mais excessiva algo de mais relaxado, quase triste. Como se lutasse com as palavras."

Como se não acreditasse já no que diz? "Sim, foi essa a inteligência que trouxe ao filme. E só por que ele é tão convincente como sedutor compulsivo é que demora algum tempo ao espectador perceber que Roger afinal não é um galã assim tão bem sucedido com as mulheres. É cosmopolita, é carismático. Mas se calhar não está assim tão interessado em engatar; se calhar, até quer ver as mulheres pelas costas."

É assim que Roger adquire contornos de tragédia: encenador da sua própria queda. É preciso acrescentar que este filme das aventuras de Roger na cidade adquire ainda os matizes do "filme de iniciação" às estratégias do engate - ou de perversão. É que chega a Manhattan Nick (Jesse Eisenberg), o virginal sobrinho, que Roger vai expor ao encanto das sereias (Isabella Rossellini, Elizabeth Berkley, Jennifer Beals). Como uma terna passagem de testemunho de uma forma de artesanato - está no ecrã: Roger várias vezes se movimenta como se fosse sair de cena, como se virasse as costas, e até juraríamos que o move o pudor.

buddy movie.

Temos filme. Temos uma das maiores (se não a maior) interpretações de um actor vista este ano em Portugal. Mas temos mais do que um filme de um "one man show" com diálogo - os homens do dinheiro obstaram inicialmente, quando leram o argumento, dizendo a Dylan Kidd que parecia teatro.

"No papel havia gente a falar pelos cotovelos, mas nós, eu e o meu director de fotografia, Joaquin Baca-Asay, tínhamos na cabeça um filme vibrante. Foi difícil, tivemos de convencer as pessoas de que havia atmosfera. E sabíamos que tínhamos actores tão bons que trariam ao filme um acréscimo de realidade, e que as pessoas iriam perceber que também não era 'sitcom'. Que a Nova Iorque deste filme não é a Nova Iorque da televisão."

O filme é virtuosamente escrito (pelo realizador), mantendo uma espécie de crispação permanente na troca de diálogos que se torna angustiante porque nada nunca chega a uma resolução, nunca atinge um desenlace - como acontece nas "sitcoms". Mas o que acaba por ser decisivo é a forma como Nova Iorque, e aquilo que imaginamos ou conhecemos dela, estando fora de campo ou nunca sendo "cenário", envolve o filme, participando na construção de uma claustrofobia. "Roger Dodger" foi um dos primeiros filmes a ser rodados na cidade a seguir aos acontecimentos do 11 de Setembro, e houve quem teorizasse: a clausura em que a câmara escolhe encerrar as personagens era uma espécie de pudor em olhar de frente a cidade.

"É preciso ter cuidado com as teorias", avisa Kidd, "porque, se bem me lembro, aquele Outono numa cidade devastada pela tragédia foi dos melhores Outonos que passei em Nova Iorque. Tivemos uma boa equipa: havia poucos filmes em rodagem, tivemos acesso aos melhores técnicos. E havia um sentimento caloroso entre as pessoas. Não, o 'look' de 'Roger Dodger' foi uma decisão estética, embora ela tivesse sido adequada a um filme com um orçamento tão pequeno como este. Nova Iorque é uma presença invisível. Nova Iorque é uma daquelas cidades que qualquer pessoa imagina, mesmo que nunca cá tenha estado. Mas devemos agradecer ao facto de termos tido pouco dinheiro: possivelmente não teríamos resistido à tentação se tivéssemos meios para filmar planos gerais da cidade."

"Na verdade", continua, "este é um 'buddy movie', como um daqueles filmes de Hollywood. Mas feito com pouco dinheiro. E tentando suspender a descrença do espectador: afinal, não é assim tão banal dois tipos irem a um bar para encontrar miúdas que se parecem com Jennifer Beals e Elizabeth Berkley. Para isso, para esse acréscimo de realidade, contribuiu o trabalho com os actores. Estava tudo escrito, tivemos muitos ensaios e sessões de improvisação, sobretudo por causa das personagens de Roger e do sobrinho. Mas Campbell é um actor muito inteligente e atento aos riscos de autocondescendência."

os 70's.

A propósito de Roger - do facto de a sua inteligência ter um efeito hipnótico sobre o espectador, permitindo-lhe ultrapassar o que há de desagradável na personagem (é o homem que adoramos odiar ou o homem que odiamos gostar, tanto faz) -, Dylan Kidd tem evocado "Nu", de Mike Leigh, e a personagem que nesse filme era interpretada por David Thewliss. Mas arriscamos: viu um filme de Hal Ashby, "The Last Detail" (1973), em que dois marinheiros andavam com um terceiro (também virginal) pela cidade? "Claro, é magnífico, é obviamente um dos filmes de referência para 'Roger Dodger'. Mas também o realismo/onirismo de 'Taxi Driver' [1976], de Martin Scorsese."

Não é possível escapar-lhes, aos anos 70 de Hollywood? "De facto, são os anos de referência e toda a gente hoje os cita. Talvez porque foi a última vez em que os estúdios não estavam tão preocupados se os espectadores iam gostar ou não da personagem de um filme. Hoje, nos Estados Unidos, confia-se pouco que um espectador vá gostar de uma personagem se ela não for 'boa'. Aconteceu com 'Roger Dodger', na fase em que andávamos à procura de dinheiro. 'Esse tipo não é boa pessoa.' Respondíamos: 'Sim, mas estão ou não interessados?' Os anos 70 foi a última vez em que as personagens dos filmes foram livres."

É aí que se banha a "coqueluche" dos cineastas independentes. À qual Dylan Kidd, 34 anos, que conseguiu assinalável sucesso de estima e prémios em festivais internacionais (de Veneza a Tribecca) com esta sua primeira longa-metragem, tem o pudor de dizer que pertence. Aliás, suspeita-se que a categoria "cinema independente americano" é, para ele, um estatuto vacilante e sempre reformulável. Explica: "O mercado americano 'mainstream' assimila qualquer movimento na área dita independente. Quando Steven Soderbergh fez dinheiro com 'Sexo, Mentiras e Vídeo', os estúdios trataram de integrar o fenómeno. É como a Internet: supõe-se que seja uma nova aventura artística, mas passa a ser uma forma de vender mais coisas. Aconteceu o mesmo com 'Pulp Fiction', de Tarantino: toda a gente tratou de fazer 'Pulp Fictions'."

A ideia de um grupo, de uma comunidade, é-lhe assim difícil de identificar. "A indústria é demasiado grande para sermos uma comunidade." E ainda se reserva a possibilidade (e é sincero: devido a incapacidade) de aceder à fasquia dos Anderson, PT e Wes, ou dos David O. Russell. "Eles estão no centro de um mundo traiçoeiro. Trabalham com o sistema tentando manter a alma. Há pressões muito grandes para se fazer um filme que renda dinheiro. É um combate de boxe. Ainda não estou preparado, perderia - quando se é a 'next big thing' e as bilheteiras não correspondem, as consequências podem ser fatais, e temos de começar tudo de novo. Hei-de fazer um filme para um estúdio. É inevitável. Mas ainda não estou preparado. David O. Russell conseguiu-o com 'Três Reis'. Eu seria derrotado pela técnica. Preciso de construir as coisas pouco a pouco. Gosto de viver em Nova Iorque, gosto do meu apartamento, dos meus gatos."

E está a terminar a montagem da sua segunda longa, "PS", que continua premissas do filme anterior: passa-se num "campus universitário" nova-iorquino, mas a cidade mal se vê ("sempre que penso no 'skyline', digo: 'Não pode ser, toda a gente o filma'"), e a universidade é uma espécie de fortaleza medieval para a personagem principal, desta vez uma mulher - que conhece um homem mais novo que lhe lembra alguém do passado. "É o que aconteceria a Roger Dodger se ele quisesse mesmo conhecer alguém." Dylan Kidd dependeu da "kindness of strangers", ou seja, de nomes sonantes, para manter a sua independência: Laura Linney (amiga de Campbell Scott...), Gabriel Byrne, Marcia Gay Harden.

Para acabar com "name dropping"... que filmes tem visto, que cineastas tem descoberto? "Há um tipo interessante, David Gordon Green [autor de 'George Washington', recentemente programado em Lisboa pela Associação Zero em Comportamento]. Vi 'Kill Bill', de Tarantino - tudo o que ele faz me interessa, mesmo se 'Kill Bill' não é 'Jackie Brown'. Wong Kar-wai é uma referência - a forma como filma as cidades como labirintos, pensei também nele para 'Roger Dodger'. E o Wenders antigo, de 'Alice nas Cidades', também me interessa. E Almodóvar."

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