"Expresso" compra acções para "infiltrar" jornalista

As acções foram compradas no início do mês, servindo assim de "passe" para a discussão de um "dossier" sensível: a privatização de um quarto do capital social da empresa a favor de um parceiro do sector da pasta e papel (ver pág. 21).

A situação, que o "Expresso" declinou comentar, é duplamente equívoca em termos éticos. Trata-se de uma jornalista que escreve sobre o comportamento financeiro e económico de uma empresa da qual tem acções. Todavia, a repórter, Christiana Martins, é sobejamente conhecida daqueles accionistas, dado que cobre as actividades da empresa há já muitos anos - ou seja, os restantes accionistas sabem que a sua presença na assembleia se destina à recolha de informações para publicar e não à participação activa nos destinos da Portucel, o que de resto foi assumido pela jornalista na própria reunião.

Ora, um dos administradores presentes na assembleia de ontem admitiu que a situação era bastante desagradável e que a presença da redactora era um factor de inibição: certos accionistas poderão não estar à vontade para uma participação plena e livre diante de "canal directo" para as páginas do "Expresso".

O caso não é único, porém. Já no ano passado o semanário do grupo Balsemão adquirira acções da Cimpor para acompanhar "por dentro" o período de privatização da cimenteira, associada à entrada no capital da empresa da Teixeira Duarte e ao reforço do BCP. Um jornalista da Reuters e outro do Canal de Negócios, o "site" de noticiário económico da Cofina, também se fizeram accionistas para poderem tomar parte nessa assembleia da Cimpor.

Terminado o período "quente", o "Expresso" desfez-se das acções que havia comprado e, ao que o PÚBLICO apurou, pretende fazer o mesmo assim que a questão da privatização da Portucel ficar concluída.

Circunstâncias semelhantes são igualmente protagonizadas por jornalistas da área de desporto que se filiam como sócios dos clubes desportivos para participarem nas respectivas assembleias, recolhendo informação para publicar.

Fazer-se padre para ouvir confissões

O pressuposto ético de um repórter "é a lealdade", sublinha o presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, Óscar Mascarenhas, que manifesta "fortes dúvidas sobre a lealdade de um accionista ou sócio de um clube que o é não com o objectivo de contribuir para a empresa ou ajudar o clube mas para fazer fuga de informação".

"Isso seria como filiar-se num partido para contar detalhes das reuniões ou, no limite do absurdo, fazer-se sacerdote para ouvir as confissões de alguém que não quer contar publicamente um acontecimento", compara.

Mascarenhas lembra que, por regra, o jornalista deve identificar-se como tal. O "disfarce" só é admissível "na conjugação de dois elementos: a existência de interesse público e de risco de vida ou físico para o jornalista, se se identificar".

Nos casos citados, e em particular na questão Portucel, "não estão preenchidas as condições para o jornalista assumir um disfarce".

Das duas uma, explica: "Ou a assembleia de accionistas é fechada aos 'media', e nesse caso este tipo de 'infiltração' não é ético [porque aquela jornalista está presente como accionista] , ou, se a assembleia sabe que está ali uma repórter e aceita a sua presença, é obrigada a abrir as portas aos outros jornalistas", sob pena de estar a privilegiar um órgão de informação face aos restantes.

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