Até podemos comparar: os ícones de plástico foram dar a Warhol e à Silver Factory, directamente saídos da rua, e assim Clark também recrutou os seus actores dos parques de "skate". Um "star system" alternativo (podemos chamar assim), entrou em construção, com as suas "stars", as suas pequenas histórias e desastres. Fiquemo-nos por Clark e arredores: Chloe Sevigny, o mais próximo que o sistema alternativo chegou da "diva", conseguiu fazer a travessia para o "mainstream" - é a história de sucesso; Harmony Korine, o "jovem prodígio", autonomizou-se, "matou o pai" - é o episódio "freudiano"; Justin Pierce (o Casper de "Kids") enforcou-se num hotel de Las Vegas - é o sabor amargo de tragédia (na Factory houve uma "overdose", a de Eddie Sedgwick, "poor little rich girl"); e há os veteranos, os do primeiro momento (que têm pouco mais de 20 anos), como Rosario Dawson ou Leo Fitzpatrick, e os recém-chegados, como James Bullard, Harold Hunter, Tiffany Limos. Não faz parte do clã, mas por um filme, "Bully", foi o epítome da criatura "clarkiana", um "caso problemático" de sensualidade viscosa e passividade doentia: Brad Renfro, que em nenhum outro filme foi assim.
"Street autenticity" é, então, a caução, com um cortejo de histórias de abandono, sexo, drogas e "skate" (rock'n'roll nos tempos de Warhol) a procurarem protecção numa figura dominadora, tal como podem ser um pai e um vampiro. Que, no caso de Warhol, era de uma inquebrantável distância, perante as fragilidades dos aleijados emocionais que iam dar ao seu estúdio; no caso de Clark é de uma proximidade que alguns consideram lúbrica e promíscua (basta ver o DVD de "Bully": numa série de entrevistas ao "cast", os actores entram no jogo e quando contam a forma como foram seleccionados para o filme introduzem, sem se desmancharem, um "and, of course, I fucked Larry Clark...").
sobressalto. A caução do trabalho de Clark, como fotógrafo e como cineasta (sempre mais reconhecido quando se exprimiu através da fotografia), é poder dizer, devido às circunstâncias da sua vida pessoal, "eu conheço-vos, eu sei, eu fui como vocês" - para estar ao nível dos seus fotografados, por exemplo, decidiu aos 47 anos começar a praticar "skate".
É daí que lhe vem a autoridade - e o sortilégio que lhe reconhecem os "kids" que com ele trabalham. Mas não é por isso que se livra da "fama" de "teenage exploitation". E de deixar passar, na forma como olha os "kids", e em doses variadas, fascínio, vontade de exibicionismo e um indisfarçável moralismo (mas estas coisas são sempre ambíguas: a verdade é que algumas das personagens de Clark são inesquecíveis, ficam connosco para sempre, e a verdade é que ele transformou a imagem do "teenager" no cinema, inculcando na memória do espectador um sobressalto permanente).
Com "Bully", baseado num "fait divers", em que o cinema de Clark aproxima a figura do adolescente do assassino, e com uma luxúria sanguinolenta quase "shakespeareana", pela primeira vez surgem os "pais" no mundo dos "kids" (se não contarmos com o atípico "Another Day in Paradise"). Clark (e não é por acaso) interpreta um deles. Aparece, ao lado de outros progenitores, numa sequência final, no tribunal, em que os "filhos" acabaram de ser julgados por um crime mas mantêm-se alheados, como se vogassem num espaço de alucinação. Os pais estão de olhos esbugalhados, bocas entreabertas, como se quisessem mostrar que descobriram com horror quem trouxeram ao mundo (e logo ele, Clark, investindo a sua figura de autoridade de paternalismo e alguma soberba de julgamento...).
"Ken Park, quem és tu?", que começa com um "travelling" sobre uma cidade californiana idêntico ao "travelling" sobre a paisagem da Florida de "Bully", faz o movimento de integração completa dos pais no mundo dos filhos como personagens de corpo inteiro. O que era apenas um estertor de sarcasmo em "Bully", é aquilo que distingue "Ken Park": rodear as personagens do mesmo fôlego de olhar, envolver pais e filhos com a mesma crueldade, voyeurismo e ternura, num conjunto de histórias tocadas pela solidão, pelo desespero, pela sobrevivência e pontuadas pelo surrealismo (aquele cão sem uma pata; o neto assassino com as dentaduras dos avós). Só assim estes pais e filhos eventualmente chocantes têm a hipótese de serem eventualmente tocantes. Nestas histórias que se sucedem como cubículos fechados, horizontalmente espalhados ao longo de um limbo de sol e humanamente desertificado, acontece então o inesperado: sendo o mais explícito filme do realizador (o projecto foi a razão para Larry Clark começar a fazer cinema, logo houve um investimento em chegar à figuração de imagens-limite), o seu olhar de cineasta está mais nu.
Continua ácido. Não rejeita filmar uma masturbação ao vivo e seguir o percurso do esperma ou expor em público a educação sexual dos seus principiantes actores - a intimidade nos filmes de Clark é sempre uma proeza de descoberta e de transgressão, para espectadores e actores, e não há "simulação" que sirva de amparo. Mas o olhar está com os "kids" e, desta vez também, com os pais - esse olhar tirou espaço à postura de "pai" incestuoso ("Kids") ou de pai castigador ("Bully"). Depois de um padrasto, alcoolizado, tentar violentar um enteado em "Ken Park", Clark fica do lado do "nobody loves me" derrotado do adulto (uma das figuras para pôr ao lado, marcantes na nossa memória, de um qualquer dos "miúdos"). Estar próximo não significa querer salvar, porque isso é um embuste, ou ter a pretensão de conhecer e eplicar; apenas reconhecer que existe algo de incontornável de que ninguém se salva (todos estão sozinhos) mesmo quando se sobrevive.
Por exemplo, quem é Ken Park? Antes das histórias de confusão emocional, obsessão religiosa, droga ou incesto num limbo californiano, vemos um miúdo ruivo e sardento a andar de "skate", a fazer acrobacias. É o genérico do filme. Depois ouvimos um tiro, e presenciamos um suicídio. Era Ken Park.