Doida por amor

Ao abordar-se uma película como "Joana Louca", esperar-se-ia, por isso, encontrar bons valores de produção e uma linguagem narrativa escorreita e sem problemas. A este nível, nada a dizer: excelentes guarda-roupa e reconstituição histórica; trabalho fotográfico altamente profissional; razoável direcção de actores, embora o italiano que encarna Filipe de Habsburgo, Daniele Liotti, se pavoneie mais como um modelo do que como um credível príncipe das Espanhas.

O argumento baseia-se na vida de Joana, filha dos reis católicos, neta de Isabel de Portugal, e na sua paixão obsessiva por Filipe de Habsburgo, Duque da Borgonha, e Arquiduque da Áustria. Declarada louca por razões políticas - mas não só - acaba os seus dias encarcerada, enquanto seu filho, o Imperador Carlos V, e o neto, Filipe II (I de Portugal), continuam a dinastia Habsburgo.

As questões principais surgem quando nos interrogamos sobre o interesse cinematográfico de uma revisita deste tipo ao tecido histórico do passado europeu. E chegamos à conclusão que não estamos muito longe do desejo ilustrativo das séries televisivas de valor pedagógico, feitas para acompanhar centenários ou exposições internacionais. E lembramo-nos também de pastelões como "1495" (para comemorar a chegada de Colombo às Américas) e até de (com muito maiores dificuldades técnicas e diferentes restrições ideológicas) do "Camões" ou da "Inês de Castro" de Leitão de Barros.

Claro que o filme de Aranda tem a vantagem de não ser pretensioso, nem pomposo, mas também carece de capacidade de intervenção dramática própria sobre os eventos que reconstitui, sobretudo se exceptuarmos a melhor sequência, aquela em em que a raínha interrompe a reunião magna de nobres figuras que se preparam para a declarar louca. Quase tudo o resto, se resume a um desfile de trajes de época, a uma conceito compactado de História, contada aos consumidores apressados de audiovisual.

Esta escolha é tanto mais limitada, quanto o ponto de vista de partida não é redutor: o argumento origina-se numa peça de teatro e procura complexar o conceito de loucura, a que hoje chamaríamos mais obsessão amorosa, ou, para citar os surrealistas, "amour fou". Só que nada no tratamento fílmico vai na direcção do excesso ou da trangressão: tudo está no seu lugar, muito certinho, tipo "que lindas histórias tem a nossa História para contar em audiovisual".

E chegamos ao problema de fundo: cinema e audiovisual são duas coisas diferentes. Falta ao segundo a tensão e o risco imagético do primeiro; em contrapartida, sobra-lhe gosto ilustrativo e segurança medíocre de objectivos e de meios. Sem sairmos da História espanhola, podemos dar dois exemplos: "El Cid" (1961), de Anthony Mann, era um disparate histórico, uma espécie de "western" de ambiência medieval, mas tinha a grandeza do cinema de grande risco e permanece vivo e forte, para além do "kitsch" que encena; "O Rei Pasmado" (1991) toma a anedota histórica como centro, mas cria mais do que um cenário, faz viver um teatro conceptual do mundo barroco. "Joana Louca", pelo contrário, fica preso no seu aparato televisivo, arrumadinho e caro, mas sem futuro, nem ideias de cinema.

Sugerir correcção
Comentar